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Leonardo Sakamoto

MP previa liberdade econômica ao empregador e menos proteção ao empregado

Leonardo Sakamoto

20/09/2019 21h44

Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

O governo federal e parte do Congresso Nacional bem que tentaram, mas a maioria dos "jabutis" (temas estranhos a um projeto original, incluídos na surdina), de caráter trabalhista, da Medida Provisória da "Liberdade Econômica", não foi aprovada. Quando Bolsonaro sancionou, nesta sexta (20), o pacote de mudanças legislativas para reduzir a burocracia de empresas, o texto que chegou às suas mãos já não contava com as propostas mais relevantes do que estava sendo chamado de "segunda fase da Reforma Trabalhista" ou "Minirreforma Trabalhista". Membros do seu governo e do parlamento prometem tentar de novo.

O texto que havia sido enviado pelo Poder Executivo com 19 artigos saiu da comissão que o analisou na Câmara dos Deputados com 53. Parte das propostas de alterações em leis trabalhistas que haviam sido incorporadas pelo relator do projeto, o deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS), foi retirada no plenário da Câmara para permitir a aprovação da MP. Outras foram derrubadas pelo Senado Federal. Caso estourasse o limite de prazo para aprovação, a MP caducava e Bolsonaro só poderia propor novamente o texto no ano que vem. A oposição jogou com isso e com a chance dos jabutis serem questionados no Supremo Tribunal Federal para conseguir derrubar pontos.

Gerou polêmica, por exemplo, a proposta que mudava o repouso semanal remunerado aos domingos. A Constituição prevê que o descanso pode ser concedido preferencialmente aos domingos e determinadas categorias já contam com regras para o trabalho nesse dia estipuladas em negociações coletivas. O projeto continuava garantindo que o trabalhador teria direito a uma folga semanal, mas ela só precisaria coincidir com o domingo uma vez a cada sete semanas. Após reclamações, caiu para uma a cada quatro. E depois, foi retirada no Senado. Ao conceder descanso em outro dia, o empregador ficaria dispensado de pagamento extra pelo domingo trabalhado. Na prática, trabalhar nesse dia não traria nenhum benefício para o trabalhador, nem financeiro. A folga aos domingos garante a vida comunitária, permitindo o convívio entre pais e filhos, o lazer e a participação em atividades sociais ou religiosas.

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Outra proposta que caiu foi a que apontava que "havendo necessidade imperiosa nas atividades econômicas do agronegócio", sujeitas a condições climáticas, o trabalho poderia ser exercido em sábados, domingos e feriados, prevendo remuneração ou compensação. Com isso, o trabalhador poderia ficar quase duas semanas sem descanso em uma atividade naturalmente mais penosa. As Federações de Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul e de Pernambuco ouvidas pelo blog afirmam que não são contra o trabalho aos domingos, mas que isso deve ser feito de forma criteriosa, avaliando o histórico do empregador, elaborando turnos de revezamento para garantir o repouso semanal, por acordo coletivo.

Um outro trecho que acabou retirado pelo próprio relator desobrigava micro e pequenas empresas com menos de 20 empregados de contarem com uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa). Vale lembrar que o Brasil é um dos campeões mundiais de acidentes de trabalho. Entre 2012 e 2018, ocorreu um acidente a cada 49 segundos e um morto a cada 3h38, causando também um prejuízo bilionário. Nesse sentido, eliminar a obrigatoriedade da comissão segue na contramão do combate aos impactos sociais e econômicos decorrentes de acidentes. Uma das principais razões para a medida é que os empregados que fazem parte da Cipa têm estabilidade no emprego.

Outra proposta polêmica previa que contratos de trabalho acima de 30 salários mínimos mensais seriam regidos pelo Direito Civil, ressalvadas as garantias do artigo 7º da Constituição Federal – que inclui direitos como 30 dias de férias e 13o salário, mas exclui muitas das proteções à saúde e segurança previstas na CLT. A alteração foi vista como a porta de entrada para a "carteira verde e amarela", sonho do ministro da Economia, Paulo Guedes, em que a "negociação" individual estaria acima da CLT.

Reforma fora de lugar

Logo após a aprovação pelo Congresso Nacional, governo e parlamentares favoráveis a uma nova Reforma Trabalhista prometeram juntar o que ficou de fora em um novo projeto de lei.

Além disso, em julho, o Ministério da Economia instituiu o Grupo de Altos Estudos do Trabalho para propor uma nova rodada de alterações na legislação dessa área. A comissão é composta por membros do Poder Executivo e juízes, desembargadores e ministros da Justiça do Trabalho escolhidos pelo governo federal. Críticos à forma como o grupo foi montado afirmam que os magistrados apontados estão alinhados com o governo Bolsonaro e seu posicionamento sobre direitos trabalhistas.

A MP da "Liberdade Econômica", agora transformada em lei, traz mudanças trabalhistas como o aumento na dispensa do controle de ponto de dez para 20 empregados; a previsão do ponto por exceção (que permite o registro apenas quando o horário for diferente do habitual); amplia a dispensa de inspeção prévia para verificação de segurança e saúde dos trabalhadores para o início das atividades de uma empresa; e afirma que a Carteira de Trabalho terá formato, preferencialmente, digital.

O projeto da MP da "Liberdade Econômica" nasceu bem intencionado, com o objetivo de facilitar a vida do pequeno empresário no Brasil – que realmente sofre com um país que não é amigável. Mas ficou, equivocadamente, inchada no meio do caminho. E arriscou a tratar de um tema que demanda discussão tripartite – empregadores, trabalhadores e governo.

É possível promover geração de empregos sustentável sem jogar o custo da retomada da economia apenas nos trabalhadores. Sem dificultar o descanso aos domingos com a família ou atropelar a pausa para recompor as forças em nome de uma colheita. Sem criar entraves para interditar locais de trabalho inseguros ou dificultar a verificação das condições por parte da fiscalização.

Garantias de que trabalhadores não terão saúde, segurança e dignidade violadas ao prestarem serviço a um empregador não deveriam ser vistas como "burocracias" ou "entraves ao crescimento" em qualquer sociedade minimamente civilizada. Por isso, a utilização desses argumentos ad nauseam durante o trâmite da Medida Provisória da "Liberdade Econômica" mostra que o preço da liberdade segue sendo a eterna vigilância.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.