Topo

Leonardo Sakamoto

Além de Lula, milhares de presos aguardam decisão sobre 2ª instância no STF

Leonardo Sakamoto

14/10/2019 13h51

Lula concede entrevista à Folha e ao El País, na Polícia Federal, em Curitiba, onde está preso Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

"Muito além do impacto no caso de Lula, o julgamento sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância afeta o encarceramento de milhares de outras pessoas que têm sofrido por essa interpretação", afirma Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV Direito-SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta. "Interpretação que já foi alterada pela mudança de posicionamento do ministro Gilmar Mendes sobre o tema."

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, marcou para esta semana o julgamento de casos que podem manter a possibilidade de execução provisória para condenados em segunda instância, decisão do tribunal tomada em 2016, ou retornar à situação anterior – cuja prisão dependia de trânsito em julgado. Condenado por Sérgio Moro, então juiz federal e, hoje, ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, e com sentença confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro envolvendo o apartamento triplex do Guarujá, Lula é o caso mais famoso que poderia se beneficiar dessa decisão. Mas não o único.

De acordo com dados do Cadastro Nacional de Presos, de agosto de 2018, do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tinha 148.472 presos condenados com execução provisória (24,72% do total), 211.107 condenados com execução definitiva (35,15% do total) e 241.090 presos sem condenação (40,14% do total). O último número, aliás, é considerado uma vergonha nacional.

Os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski, José Dias Toffoli e Gilmar Mendes vêm concedendo habeas corpus para casos como esse em outras sentenças do Supremo. Pressionam para ver o tema rediscutido. Afirmam que ignora-se as demandas de outros brasileiros que, muito antes de Lula, já queriam exercer seu direito constitucional de esgotarem os recursos de seus processos em liberdade. 

"O Supremo, há muito tempo, adiou o julgamento sobre a constitucionalidade da prisão após a condenação em segunda instância e antes do trânsito em julgado. Esse tema ficou pendente só por razões políticas, por conta do impacto da prisão do ex-presidente Lula", afirma Eloísa Machado de Almeida.

Avaliação semelhante tem Alamiro Velludo Salvador Netto, professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "Esse debate que agora está sendo equivocadamente vinculado de maneira exclusiva ao ex-presidente Lula, no fundo, é sobre qual o limite do poder do Estado brasileiro para começar a punir uma pessoa." Segundo ele, "existe uma série de pessoas no Brasil que estão cumprindo penas antecipadas, ao meu ver, de forma contrária à Constituição."

O contexto mudou de abril para cá, quando a análise do caso foi adiada por Toffoli. "Começamos a verificar uma consciência do Supremo Tribunal Federal do seu papel no refreamento de medidas autoritárias sob a veste de combate à corrupção e de outros delitos", afirma Salvador Netto, que também é advogado criminalista. "O STF não é um órgão de formulação política, mas de declaração jurídica. E a Constituição e o Código de Processo Penal definem que a lei aponta para a prisão após o trânsito em julgado", explica.

Para ele, os diálogos entre Moro e procuradores da força-tarefa da Lava Jato expostos pelo site The Intercept Brasil e parceiros, se, por um lado, dificilmente condenariam judicialmente os envolvidos, por outro, mostram como é importante o sistema de garantias normativas. "Por serem os humanos falhos, as pessoas se deixam legal pelo cargo ou mesmo pelas boas intenções, mas passam dos limites. O STF deve ter percebido que a reafirmação do direito no processo penal é a única salvaguarda que nós temos para evitar os abusos. Seja na Lava Jato, seja nos processos comuns que tramitam diariamente nas varas do país."

Há a possibilidade do julgamento encerrar-se ainda está semana ou de algum dos ministros pedir vistas do processo e interrompê-lo. Além disso, caso os ministros percebam a formação de uma maioria que vá no sentido contrário do atual entendimento, nada impede o plenário dê uma liminar contra as execuções antecipadas de pena até o final do julgamento. Uma liminar que pode valer tanto para novas execuções quanto para as em curso. A decisão compete aos ministros do STF.

O bafafá da segunda instância

O princípio da execução da pena após trânsito em julgado está previsto em dois lugares em nossa legislação: no inciso 57, artigo 5º, da Constituição Federal, e no artigo 283 do Código de Processo Penal. Segundo Eloísa Machado, parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal está tentando rever a decisão de 2016 quando foi autorizado a execução provisória da pena para condenados em segunda instância. Essa parte acredita que a interpretação do STF fere o texto constitucional.

O artigo 5º afirma que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Já o artigo 283 afirma que "ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva". Lembrando que, para mudar a Constituição Federal, são necessários 308 votos de deputados e 49 de senadores – ou seja, não é muito fácil. E o presidente não sanciona, nem veta.

Salvador Netto lembra que a redação do artigo 283 é de 2011, portanto produto de decisão recente do Congresso Nacional. "O parlamentar, debruçando-se sobre esse tema, deliberou que só pode ser preso após trânsito em julgado. Não é possível dizer que há um déficit de deliberação causado pelo fato do Congresso não discutir a matéria. Não tem vácuo", explica. Ele acredita que só a alteração do Código de Processo Penal não resolveria a insegurança jurídica sobre o tema. Pois mesmo alterado o artigo 283, a Carta Magna – que está acima do CPP – funcionaria como uma trava.

"O que está em jogo é o Estado de Direito. Após a ditadura militar, tivemos uma Constituição Federal pautada em uma ideia de liberdade e um Direito Penal que implica em um sistema de garantias", afirma."E é por isso que a Constituição brasileira ao contrário da espanhola ou da italiana fala de trânsito em julgado e não em culpabilidade para tratar da prisão. A reafirmação do Estado de Direito contrapõe o voluntarismo do agente público."

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.