Paraguaios são resgatados da escravidão após dez anos em fazenda no MS
Seis trabalhadores paraguaios foram resgatados de condições análogas às de escravo em duas propriedades rurais, nos municípios de Caracol e Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, entre os dias 1º e 15 de outubro. Quatro deles estavam há mais de dez anos trabalhando na mesma fazenda.
As operações, coordenadas pela chefia de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho, contando com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Militar Ambiental, resgataram 13 pessoas ao todo. Mais de 54 mil pessoas foram retiradas dessas condições pelo governo brasileiro desde 1995, de acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Na primeira fazenda, em Caracol, voltada à criação de gado, quatro paraguaios e dois brasileiros atuavam na produção e manutenção de cercas. O auditor fiscal do trabalho Antônio Maria Parron, que coordenou a ação, afirmou que as pessoas tinham que fazer suas necessidades no mato. O alojamento era precário. A água para beber, tomar banho, cozinhar e lavar as roupas era colhida em um riacho através de um recipiente improvisado que, antes, era usado para defensivos agrícolas. A carne que consumiam estava em estado de decomposição e era guardada em uma embalagem reutilizada de lubrificante. Quatro paraguaios haviam começado a trabalhar em março de 2009.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, o empregador é Amarildo Martini, sócio do grupo Rodoserv, que conta com postos de alimentação, serviços e combustíveis em rodovias. O gerente do grupo, Valdir Teixeira da Silva Júnior, negou que trabalhadores na fazenda estivessem submetidos a condições análogas à escravidão e afirmou que a operação apenas identificou trabalhadores sem registro. Num primeiro momento, Júnior declarou que o acordo com os trabalhadores já tinha sido concluído, mas depois disse que as tratativas continuam.
"A operação aconteceu apenas por falta de registro. A empresa está fazendo o acordo para acertar o que compete a ela, dentro da responsabilidade dela e dentro da legalidade. Agora, essas condições que estão colocando aí, isso não existe. É estranho o Ministério Público fazer um negócio desses, de uma situação que não é real", afirmou. De acordo com ele, a fazenda não tem responsabilidade pelo caso, pois foram contratações feitas por um terceiro. Numa segunda ligação, o gerente do grupo destacou que a operação aconteceu na fazenda Rubi e não na Rodoserv IV, ambas de propriedade de Martini.
Uma ata de uma audiência realizada, no dia 4 de outubro, entre representantes do proprietário, auditores fiscais do trabalho e o procurador Paulo Douglas de Moraes, na sede do Ministério Público do Trabalho, em Campo Grande, aponta que o empregador não concordou com o cálculo dos direitos trabalhistas devidos, nem com o dano moral individual proposto pelo MPT – 50 salários para cada. O procurador sugeriu, então, o pagamento dos últimos cinco anos, deixando o restante para a discussão judicial. "Todavia, em nova consulta ao empregador, este preferiu a judicialização de toda a questão, até porque, o empregador informou que 'conhece o ministro da Economia' ", diz a ata. O documento, que faz parte do inquérito civil sobre o caso, foi assinado pelos participantes.
Sobre a citação ao ministro Paulo Guedes, Júnior declarou que o proprietário da fazenda "não conhece e nunca teve contato com o ministro". E fez um aviso: "Isso não procede, inclusive, se for colocado alguma coisa que compromete a nossa imagem e que não procede, a gente vai tomar providências contra o UOL".
Outros trabalhadores da fazenda, como os que cuidavam do gado, encontravam-se em situação condizente com a legislação trabalhista, de acordo com a fiscalização. Da mesma forma, a propriedade contava com estrutura e garantia bom trato aos animais. A denúncia sobre trabalho escravo envolvendo essa propriedade foi feita ao MPT por outro grupo de trabalhadores, que atuavam no roçado de pasto e na aplicação de agrotóxicos e deixaram a fazenda antes da fiscalização chegar. "Estamos preparando a ação judicial tendo em vista do fracasso na negociação", afirmou o procurador do Trabalho Paulo Douglas.
Aspecto turvo e gosto amargo
Já no município de Bela Vista, outros sete trabalhadores foram resgatados da extração de madeira na fazenda Boa Vista – dos quais, dois eram paraguaios. Devido à indisponibilidade de alojamentos, improvisaram barracos com galhos de árvores e lona. Também não havia banheiros e o local de preparação de alimentos não contava com higiene. Como não havia energia elétrica, as carnes eram penduradas em varais expostos para secar e evitar o apodrecimento, sendo guardadas, depois, em sacolas.
A água para beber, cozinhar, lavar roupas e utensílios e tomar banho era de um banhado perto do barraco, onde havia rastros de veículos. De acordo com relatos dos trabalhadores à fiscalização afirmam que ela tinha aspecto turvo e gosto amargo.
O empregador pagou os direitos trabalhistas e verbas rescisórias dos trabalhadores, de acordo com o auditor fiscal do trabalho, Giuliano Gullo, que acompanhou a operação – ao contrário do caso anterior. O dono da fazenda não era o empregador, que havia contratado o grupo para retirar lenha de uma área que não era sua.
De acordo com a base de dados do seguro-desemprego (concedido por três meses a trabalhadores resgatados), de 2010 a 2018, 93 foram paraguaios. Desses, 56 foram resgatados no Mato Grosso do Sul.
A Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhecia que alguém fosse dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, nosso Código Penal prevê, em seu artigo 149, a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Colaborou Diego Junqueira
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