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Timor: da luta pela independência ao combate à pobreza

Leonardo Sakamoto

21/02/2008 11h09

O texto é longo, mas creio que valha a pena.

Fui cobrado pela falta de um texto sobre Timor Leste aqui no blog, após o atentado contra o presidente José Ramos-Horta, ganhador do Nobel da Paz em 1996 devido a sua luta pela independência dessa pequena nação encravada entre o Índico e o Pacífico. No mesmo dia 11 de janeiro, foi frustrado um outro ataque, dessa vez contra o primeiro-ministro e herói da independência Xanana Gusmão. O líder rebelde, major Alfredo Reinado, morreu durante a ação contra o presidente.

Estive no país em 1998 para fazer uma reportagem sobre luta do povo maubere pela autodeterminação. Depois, apaixonado pela ilha e seu povo, defendi um mestrado sobre as causas do sucesso da resistência timorense. Vou fazer algumas considerações gerais, não sobre a tentativa de desestabilização do governo promovida por insurgentes, mas sobre a história e a situação social em Timor.

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Tirei essa foto dos Vales de Maubessi, no interior da ilha, onde há produção de café.

Engana-se quem reduz os conflitos de Timor a disputas étnicas, regionais ou religiosas e esquece o difícil processo político que tem sido a fundação do Estado timorense e a miséria que atinge a maioria da população. Um dos países mais pobres do mundo, entregue à própria sorte durante a ocupação indonésia (1975 e 1999), e transformado em ícone internacional da liberdade, hoje, passado algum tempo da comoção pela independência, foi praticamente deixado de lado na pauta da comunidade internacional. Justamente quando vive sua fase mais delicada. Só reaparece em casos assim, como o atentado contra o presidente.

Boa parte do povo maubere possui poucas perspectivas de um futuro melhor, os sistemas de proteção social são incipientes, grupos políticos no poder não se entendem sobre a melhor forma de alavancar o país e faltam recursos para investimento. Além disso, a riqueza do petróleo (o mar de Timor possui uma das 20 maiores reservas do mundo) ainda não chegou à população. O Brasil, que se esquivou durante décadas de se posicionar no caso timorense e aderiu à causa na última hora, pouco contribui com o processo de melhoria da qualidade de vida no país. Enviou professores, técnicos e profissionais para capacitar o Timor, mas investimento econômico representativo ainda passa ao largo.

Os conflitos entre diferente grupos timorenses (que existiam antes mesmo da ocupação portuguesa e remontam à época do comércio de sândalo com dinastias chinesas do século 15) se acomodaram durante a luta pela independência, mas voltaram a aflorar. A identidade reativa – o inimigo do meu inimigo é meu amigo – criada contra o invasor indonésio arrefeceu. Contudo, a violência surge porque a maior parte da sociedade timorense encontra-se em situação de miséria e a pouca riqueza não consegue ser distribuída igualmente. Os mais pobres correm para se refugir nas montanhas em momentos de conflito, repetindo o que aconteceu em outros momentos da história.

E a história dessa metade de ilha encravada na Indonésia e acima da Austrália não é simples. Foi escrita através de muito derramamento de sangue do seu povo, das guerras contra a ocupação portuguesa, passando pelo extermínio causado pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial até o genocídio indonésio, sem contar as disputas internas entre rivais. Apesar de pequena (19 mil quilômetros quadrados), ela possui cerca de 30 grupos etnolingüísticos diferentes!

No dia 30 de agosto de 1999, 78,5% da população do Timor Leste votou a favor de sua autodeterminação e contra a integração definitiva com a Indonésia – o auge de 24 anos de resistência à dominação e guerra pela independência. A ocupação, mantida à força pelo governo do general Suharto, causou um dos maiores genocídios do século 20, com mais de 30% de timorenses mortos direta ou indiretamente pelo conflito – tendo como base o número de habitantes em 1975. Uma onda de violência tomou conta do país próximo à data desse plebiscito, quando grupos paramilitares armados pela Indonésia espalharam o terror entre os timorenses.

A luta pela independência criou bases necessárias para a formação e, principalmente, a manutenção de um Estado livre e autônomo. A resistência da população maubere à anexação com a Indonésia possibilitou que diferenças que bloqueavam a consolidação da união nacional fossem deixadas de lado em prol de um objetivo único. Ao mesmo tempo, criou e fortaleceu símbolos de uma identidade timorense – que antes não existiam.

Deve-se lembrar que, além das diferenças etnolingüísticas, o posicionamento ideológico colocava parcelas da população em atrito antes da ocupação. Um observador do final da década de 70 diria que uma coalizão entre a Fretilin, à esquerda no espectro político, e a UDT era inviável, tamanho era os pontos divergentes entre esses partidos que nasceram do processo de descolonização português na década de 70.

Contudo, os ressentimentos da imposição de uma política oficial de desigualdade com o favorecimento aos imigrantes indonésios que se mudavam para o Timor e o total desrespeito aos direitos fundamentais dos timorenses deu forças para os que matinham o desejo de criar um país em que os habitantes nativos participassem efetivamente de sua administração. A negação de tudo o que representasse a integração ao invasor fez-se sentir em toda a ilha, da mesma forma que o crescimento de símbolos que externassem e canalizassem a insatisfação popular. Como o catolicismo e a língua portuguesa, incipientes durante o tempo de colônia lusitana.

A guerrilha, mais do que um exército para a reconquista do território, tornou-se um símbolo da luta tanto aos próprios timorenses quanto à comunidade internacional. Sua manutenção, apesar das adversidades, representava acima de tudo o desejo da população em obter a independência. A população, através da utilização das suas tradicionais redes de parentesco e outras redes sociais, garantiu a estrutura à guerrilha e aos outros grupos da Resistência.

As Falintil, a guerrilha timorense, ao contrário do discurso de analistas que gostam de taxar os exércitos de libertação nacional do pós Guerra Fria como grupos mercenários, não visavam à pilhagem, ao roubo e à dominação territorial. Até porque, a guerrilha era considerada as forças armadas de Timor, servindo à defesa de um projeto nacional e não ao favorecimento de um grupo ou de outro, ou de uma ideologia específica. Era composta por indíviduos de diversos grupos étnicos de todas as regiões da ilha.

O posicionamento da sociedade civil, principalmente dos estudantes insatisfeitos com a dominação, também foi fundamental para a continuidade da luta. Uma nova geração, criada sob o bahasa indonésio (a língua oficial daquele país), ao contrário do que Jacarta esperava, não aceitou a presença dos javaneses em sua terra.

A conjuntura internacional do pós Guerra Fria, com a diminuição da importância estratégica da Indonésia para os Estados Unidos, e a crise econômica Sudeste Asiático no final da década contribuem um pouco para explicar o sucesso da resistência através do enfraquecimento do governo Suharto. Porém, o maior peso internacional veio dos grupos de pressão, munidos de informações fornecidas pela Resistência Timorense no exílio, que fizeram campanha para que seus governos intervissem junto à Indonésia por uma solução para o caso timorense.

No dia 20 de maio de 2002, Xanana Gusmão assumiu o cargo de primeiro presidente da República Democrática de Timor Leste, em uma festa que reuniu chefes de Estado e de governo de todo o planeta. A posse tinha um significado maior porque, ao mesmo tempo, os mauberes recebiam das Nações Unidas a administração total do seu território.

Diante de uma situação de terra arrasada, muitos se perguntaram na época se o Estado timorense conseguiria se manter frente aos desafios econômicos, sociais e políticos sem a tutela das Nações Unidas.

Além do petróleo e do cultivo do café, que pratica há tempos, o país desenvolve sua agropecuária, fomenta o turismo, que já traz excelentes receitas a outras ilhas dessa região de confluência entre os oceanos Índico e Pacífico. Na época da independência, foi criado um Plano Estratégico de Desenvolvimento que, implantado paulatinamente nos próximos 25 anos, deveria nortear a reconstrução e o crescimento do Timor. Um dos principais objetivos do governo é levar a população a participar das decisões do país. A reconstrução físico-material seria mais rápida, no entanto, se houvesse maior participação da comunidade internacional.

Mas o mais importante neste momento é a implantação das instituições democráticas. O novo governo precisa o debate amplo e crítico com a sociedade, garantir uma administração transparente e educação às gerações mais jovens para possibilitar a continuidade desse trabalho de longo prazo. Infelizmente, não tem conseguido cumprir tudo com a velocidade que o Timor necessita. Durante os festejos de 2002, o mundo viu o país como um caso encerrado, quando na verdade uma nova batalha estava apenas começando. É necessário acomodar os diferentes grupos que representam o povo timorense, repartindo a riqueza (difícil de se fazer com poucos recursos em mãos).

Quando Xanana Gusmão era presidente, a figura do primeiro-ministro era representada por Mari Alkatiri, líder da Fretilin, partido então dominante no parlamento. No início do governo, havia entre eles diferenças de como a administração deveria ser conduzida. Mari e a Fretilin defendiam o governo representativo, com as decisões tomadas no parlamento pelo deputados eleitos pelo povo. Já Xanana Gusmão considerava que deve ser dada importância à participação direta da população, tanto na sugestão de formulação de políticas públicas ou na definição do orçamento, quanto na utilização de plebiscitos.

Na origem de conflitos que tomaram o Timor Leste independente nos últimos anos estavam reclamações por parte dos revoltosos do comportamento do primeiro-ministro Alkatiri e de seu gabinete, que estaria sendo inábil para tocar o governo e o processo de estruturação do Estado. Os ministros do Interior e da Defesa se demitiram, Xanana Gusmão exortou a população a dialogar e restaurar a paz. Ele, o carismático herói da independência, era a única figura que continua respeitada e ouvida por todo o país. Com isso, ele teve que assumir uma função semelhante a que desempenhou durante os anos de ocupação, costurando a reconciliação da sociedade, enquanto as instituições e o desenvolvimento do país estiverem em processo.

As crises levaram à queda de Alkatiri, Ramos-Horta assumiu seu lugar. Depois das eleições, os papéis se inverteram, com Ramos-Horta presidente e Xanana Gusmão primeiro-ministro.

Timor Leste enfrenta um período tenso. Não é uma crise isolada, mas um rosário delas. Mas se puder se unir em torno de um mesmo inimigo novamente – a pobreza – conseguirá também se libertar. As guerras pelas quais o Timor passou ao longo de sua história e, principalmente, contra o invasor indonésio, além de forjar a nação, desenvolveram a capacidade do povo maubere de juntar forças diante das adversidades. Há uma geração inteira, filhos da ocupação, que lutou para obter a independência e, com isso, desenvolveu uma forte cultura de participação política. Esse capital acumulado será muito útil para enfrentar esses desafios dos primeiros anos de liberdade e assegurar, enfim, a consolidação da democracia.

Entrevistei o líder revolucionário, depois presidente e primeiro-ministro Xanana Gusmão em duas ocasiões – a primeira na penitenciária de Cipinang, em Jacarta, capital da Indonésia, quando cumpria pena por tentar fazer do Timor um país livre, e a outra em São Paulo, durante sua visita ao Brasil. Otimista quanto a essas diferenças, frisava que elas não deveriam ser ignoradas, mas eram levadas em conta para o desenvolvimento do país.

"Pergunta-me se superamos as diferenças. Permita-me que responda que espero que não. Este momento é o momento da vivência das diferenças. É na diferença que vamos crescer e amadurecer. É na diferença que vamos aprender o respeito democrático e enriquecer o nosso debate e as opções tão difíceis que temos de fazer nestes primeiros anos de independência. No que é fundamental e estratégico para o futuro do país, as diferentes forças políticas e da sociedade civil estão em acordo. Creio que este acordo é essencial… No resto, a diferença não só é desejável como saudável."

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto