O padre, o delegado, o coronel e os Direitos Humanos no Brasil
Leonardo Sakamoto
09/01/2010 11h23
Estou achando extremamente instrutivo os faniquitos públicos de setores contrários às propostas presentes no 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos. As críticas colocaram lado a lado a igreja, os militares e o agronegócio, que possuem em suas fileiras alguns dos maiores bastiões do conservadorismo e do atraso. É realmente o país da piada pronta, como diz José Simão. Lembra muito aqueles microcosmos de poder do Brasil profundo, presentes nas obras de Dias Gomes: o padre, o delegado e o coronel, tomando uma cachacinha na (ainda) Casa-grande e discutindo sobre os desígnios do mundo. Ou pelo menos do vilarejo. Pra frente, Sucupira!
E é de outro José Simão – bispo de Assis e responsável pelo Comitê de Defesa da Vida de São Paulo da CNBB – uma frase hilária sobre o assunto: "Vemos nessas iniciativas uma atitude arbitrária e antidemocrática do governo".
Com tanta atitude arbitrária e antidemocrática do governo Lula para ser criticada (tantas mesmo), a igreja foi pinçar logo o PNDH, que é um exemplo de construção coletiva e um alento de civilização em nosso país de mentalidade tão tacanha. Traduzindo a fala do bispo: "Vemos essas iniciativas como uma forma do Estado ter independência e não seguir as regras que ajudamos a construir ao longo de centenas de anos". Imagine só, onde já se viu duas pessoas do mesmo sexo desejarem ter os mesmos direitos dos heterossexuais? E as mulheres pobres que fazem aborto, então! Querem se ver livres da cadeia! E o pior de tudo: tirar os crucifixos e as santinhas de estabelecimentos públicas. O que esse país pensa que é? Laico?!
Os verde-oliva por sua vez estão bufando com a criação de comissão que pretende apurar o desaparecimento de opositores da ditadura militar (1964-1985) e as torturas praticadas à exaustão nos porões do regime. Os milicos consideram o programa "insultuoso, agressivo, revanchista". Fiquei esperando para ver se também não diriam "subversivo, anti-patriota, comunista, feio, bobo, chato…" Querem ter o direito de continuarem batizando ruas, praças e viadutos com os nomes de açougueiros e carniceiros que trouxeram muita dor nos anos de chumbo. Mas isso é perfumaria comparado com o desejo dos militares pró-silêncio de manter no anonimato as atrocidades e os nomes de muitos desses carniceiros, que guardam a memória do que aconteceu com desaparecidos políticos.
E, por fim, mas não menos preocupante, eis que se juntam ao grupo os ruralistas. Não vou me deter nas declarações da senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), porque ela já tem problemas suficientes para gastar tempo pensando novamente em processar este que vos escreve. Desde que ela foi graciosamente condecorada com o título de Miss Desmatamento e envolvida em um embrólio de terras em Campos Lindos, no seu estado (declarou que suas propriedades valeriam muito menos do que realmente valem), já está vendo ficar cada vez mais distante o sonho de compor chapa com José Serra para a presidência da República nas eleições deste ano. Mas estava demorando para o ministro da Agricultura trazer abobrinhas do pomar.
"O decreto [do programa] aumenta a insegurança jurídica no campo. Da forma que está colocado, ele traz esse preconceito implícito em relação a agricultura comercial ou ao agronegócio, como também aumenta a insegurança jurídica que nós já temos em função de várias outras questões." Ele está certo! Afinal de contas, com tantos indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, caiçaras, riberinhos que foram expulsos de suas terras e estão querendo voltar, muitos latifúndios vivem mesmo uma grande sensação de insegurança. Cadê os direitos humanos para os humanos direitos? Por que só discutem direitos humanos para essa gente parda e rota? Cadê os direitos humanos de quem ganha tutu na base da exploração de terras públicas ou da especulação fundiária? Cadê os direitos humanos das usinas de cana que usam trabalho escravo e, pobrezinhas, se vêem vítimas de boicotes do mercado maldoso?
Por fim, a imprensa tem o dever de trazer à tona todas as críticas ao plano, fazer ponderações, levantar debates. Mas certas redes de TV não deveriam misturar os editoriais com as reportagens para tratar do tema – é feio… Além disso, boa parte dos veículos de comunicação só entraram no tema a reboque das manifestações de setores da sociedade e não como pauta própria. O que me leva a crer que as folgas de final de ano atrapalharam o cronograma das redações, para buscar uma explicação mais amena.
Em suma, se todo lançamento de PNDH gerar um debate nacional sobre os direitos humanos em um país que tem vergonha de defender direitos humanos, proponho que não esperemos mais sete anos e que, em 2010, tenhamos mais um. No mínimo, fará com o padre, o delegado e o coronel se manifestem novamente, lembrando ao Brasil que ele é brasil.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.