Por trás do cafezinho, tinha escravo passando frio
Leonardo Sakamoto
16/07/2010 18h22
Tá com frio?
Em alguns lugares mais ao Sul do Brasil, esta pergunta deve estar sendo respondida acompanhada de um belo bater de de-de-de-dentes, haja visto que Dona Natureza esqueceu a porta da sua geladeira aberta. Abandonar as cobertas e sair para trabalhar nesse ambiente hostil se tornou um sacrifício. Imagine então se você for literalmente obrigado a isso após passar uma noite exposto ao frio? É o que acontecia no município de Marechal Floriano, no Espírito Santo, em que 15 pessoas eram submetidas à condição análoga à de escravos em uma fazenda de café.
De acordo com Rodrigo Carvalho, auditor fiscal do trabalho, em depoimento concedido à repórter Bianca Pyl, da Repórter Brasil, os trabalhadores encontrados na fazenda Araponga, de Marcelo Krohling, estavam sem cobertores e sem assistência nenhuma por parte do empregador diante de um frio intenso. "Alguns trabalhadores tiveram que ser internados, diante da gravidade do estado de saúde", explica. Além disso, eles utilizavam o mato como banheiro, consumiam a água do riacho (em um copo que era dividido pelo grupo) e, apesar do frio que fazia na região em que estavam, tomavam banho em um córrego. Por fim, segundo a fiscalização, só tinham uma refeição por dia (arroz e farinha). A libertação iniciou-se no final de junho e foi divulgada nesta semana.
Apesar de não ser um dos primeiros colocados no ranking do uso do trabalho escravo no campo (pecuária bovina, carvão vegetal, cana-de-açúcar têm sempre alcançado os primeiros lugares…), há incidência desse tipo de crime no setor. Levantamento da ONG Repórter Brasil aponta que 92 trabalhadores rurais foram libertados de cafezais no Espírito Santo nesta safra, que começou em abril.
Após fugirem e conseguirem retornar à Bahia, três trabalhadores procuraram a Comissão Pastoral da Terra para denunciar a situação em que foram submetidos no município de Jaguaré (ES), maior produtor de café conilon do Brasil. As denúncias motivaram uma série de fiscalizações em propriedades de café no estado nos últimos meses pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Federal. As fazendas envolvidas, além da Araponga, foram a Jundiá, que pertence à Celso Brioschi, a Armani, de Laurindo Armani, e a Mundo Novo, de propriedade de Nelsinho Armani.
Os trabalhadores foram aliciados em Itabuna, Gandu e Teolândia, na Bahia, por um "gato", contratador de mão-de-obra a serviço do fazendeiro. As vítimas já chegavam às fazendas devendo o dinheiro da passagem de ônibus. Os empregadores, segundo a fiscalização, utilizavam a servidão por dívida para impedir que os trabalhadores deixassem as fazendas antes do final da safra. Descontavam os valores referentes à alimentação e equipamentos de proteção dos salários e retinham as Carteiras de Trabalho. Após a ação dos fiscais, os fazendeiros pagaram os valores referentes às verbas rescisórias e custearam o retorno dos trabalhadores aos seus municípios de origem.
Lembrete: Sei que é difícil mas, quando for comprar café no mercado, exija saber se o produto foi feito obedecendo aos direitos fundamentais e se a empresa participa de algum compromisso público para que isso aconteça. Afinal, é uma parcela bem pequena dos produtores que usa de expedientes bizarros como esses. A atenção do consumidor ajuda a limar do mercado quem opera na ilegalidade – o que é ótimo para a imagem dos produtos brasileiros e melhor ainda para a qualidade de vida de nossos trabalhadores.
Nossa política de consumo é sempre uma boa reflexão a ser regada por um café que esquenta esses dias frios…
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.