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Problemas econômicos e transição para a democracia

Leonardo Sakamoto

29/01/2011 16h03

Lendo os relatos dos protestos contra o ditador Hosni Mubarak, no Egito (e morrendo de inveja dos colegas jornalistas que estão por lá, cobrindo os fatos), me lembrei de alguns pontos da discussão entre desenvolvimento econômico e regimes autoritários, que está no pano de fundo desse processo. Se a situação fosse de pleno emprego, correndo leite e mel pelo Nilo, ainda assim haveria insatisfação por liberdade, mas não nas proporções que o rumo das coisas tomou.

A relação direta entre as mudanças no paradigma gerado por uma grave crise econômica e as conseqüências disso em regimes não-democráticos está expressa em Juan Linz e Alfred Stepan em "A Transição e Consolidação da Democracia – a experiência do Sul da Europa e da América do Sul". Segundo eles, para o estudo de transições, as tendências econômicas em si são menos importantes do que a percepção das alternativas, a culpabilização do sistema e as crenças dos segmentos significativos da população e dos principais atores institucionais quanto à legitimidade. Num país como o Egito, em que 40% população vive na pobreza com menos de dois dólares por dia, essa incapacidade de dar respostas à realidade é, como afirmam o pessoal que estuda o tema, combustível que alimenta ainda mais os protestos.

Problemas econômicos severos afetam de modo bem diverso os regimes democráticos e os não-democráticos – os autoritários em especial. Um acentuado declínio econômico afeta mais profundamente estes últimos, pois costumam depender de seu desempenho para se autojustificarem. Ao contrário, os regimes democráticos possuem algumas fontes de proteção contra esses infortúnios, como a possibilidade de alternativas ao governo vigente e seu programa sócio-econômico – que podem ser substituídos nas eleições seguintes, sem que, para isso, seja necessária uma mudança de regime. No Egito, há eleições marcadas para setembro – mas para, provavelmente, eleger Gamal Mubarak, filho do ditador Hosni.

Linz e Stepan afirmam também que se a capacidade coercitiva do regime não-democrático decresce, a economia política da estagnação prolongada pode contribuir para o desgaste e o fim do regime. Não são mudanças na economia diretamente, mas sim mudanças na política (ou a falta delas) que desencadeiam a erosão do regime. Muitas vezes essa diminuição na capacidade coercitiva é acompanhada da ação de dissidências ou oposição interna organizada e da retirada de garantias externas de vital importância.

Lembro-me do caso indonésio, onde o açougueiro/ditador/presidente Haji Mohammed Suharto caiu após os protestos de 1998, decorrentes da crise econômica que se instalara no país. Não estou comparando as duas situações, longe disso. Apenas imaginando uma resposta para a pergunta: (quando) os Estados Unidos vão retirar publicamente seu apoio e abandonar o navio? Porque, apesar de apoiar governos bisonhos até quase o fim, Washington tem saltado fora do barco antes que ele naufrague por completo – para não pegar mal. No caso do arquipélago asiático, a então secretária de Estado norte-americano do governo Bill Clinton, Madeleine Albright, veio aos veículos de comunicação sugerir que Suharto deixasse o poder. Disse que o então presidente "agora tem a oportunidade de oferecer um gesto histórico, digno de um estadistas (…) preservando seu legado não só como homem que dirigiu o país, mas também como aquele que facilitou sua transição democrática". Traduzindo: "Mermão, agora é contigo".

(Eu chutaria que isso acontece quando os EUA vislumbrarem uma alternativa real à Irmandade Muçulmana, de oposição ao atual governo. Ou seja, encontrarem um governo amigo. O que está cada vez mais difícil, uma vez que a influência norte-americana por lá enfrenta uma fase de decadência e questionamento.)

Segundo os dois autores que citei acima, uma prosperidade econômica prolongada em um regime autoritário também pode minar os fundamentos de autojustificação do regime. O sucesso econômico prolongado pode contribuir para a percepção de que as medidas coercivas de exceção, adotadas pelo regime não-democrático, não são mais necessárias e podem vir a ser um mal para as conquistas já alcançadas. Crescimento econômico também pode elevar o custo da repressão, facilitando assim a transição para a democracia. Por exemplo, aumento da classe média, expansão da educação e contato com outras sociedades pelos veículos de comunicação.

Fernando Limongi e Adam Przeworski, em "Economic Development and Political Regimes", também afirmam que o desenvolvimento econômico pode abrir a possibilidade de uma transição para a democracia em determinadas circunstâncias. Porém, apesar de crises econômicas serem uma variável importante, ainda não há uma explicação eficiente de como os regimes não-democráticos deixam de existir e democracias tomam o seu lugar.

Enfim, apenas alguns recortes, sem pretensão. E um desejo de boa sorte para quem está apanhando das forças do governo na luta para passar a régua no regime. Amanhã, há de ser outro dia.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto