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Se a Amazônia é um “deserto”, por que morre gente por lá?

Leonardo Sakamoto

07/06/2011 09h57

Ouvi essa pergunta diversas vezes nos últimos dias, vinda de pessoas que eram adultas durante os Anos de Chumbo. E que foram vítimas de sua propaganda.

Quando a ocupação sistemática das terras não aproveitadas interessa a classes que detém o poder econômico, ela elabora seus mitos e cria seus heróis. Para impor seus objetivos por meio do aparelho jurídico e administrativo do Estado, são construídos suportes de legitimação que mostrem que os seus próprios interesses são, na verdade, interesses de todos e, principalmente, daqueles que vão pagar o pato. Ou seja, fazem você acreditar que o que é bom para eles é bom para você. Como bem explicou o professor Jean Hébette, a fronteira agrícola não se constitui fenômeno autônomo, nem no que se convencionou chamar sua fase pioneira (dos primeiros ocupantes que atingem e "amansam" uma área), nem na sua fase de expansão (da ocupação ampliada de forma estrutural).

A construção desse suporte ideológico culminou no slogan "Terra sem homens para homens sem terra", utilizado pelos verde-oliva. Apesar de adaptado ao novo momento, ele não foi uma novidade, mas um último produto de uma ideologia da colonização que contou com Cassiano Ricardo, em sua "A Marcha para o Oeste", Azevedo Amaral, na revista "Novas Diretrizes", e o nacionalismo de Getúlio Vargas através de seus discursos sobre a necessidade de colonizar a Amazônia e integrar o Oeste do país ao litoral. Esse slogan tinha o objetivo de transmitir a idéia de que a Amazônia é um grande deserto verde, desabitado. Contudo, uma olhadinha rápida demonstra a falácia presente na utilização desses discursos, uma vez que terras almejadas pelos novos empreendimentos agropecuários e extrativistas são, na verdade, habitadas por populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, posseiros e colonos. O que esse slogan encobre é que a Amazônia não é um vazio e que a imagem de "deserto verde" é uma construção que serve às forças econômicas interessadas em ocupar a região.

Muitas vezes, os posseiros que ali chegaram por conta própria, acreditando nesse slogan, foram transferidos de suas propriedades depois de "amansar" a terra para os grandes empreendimentos. Parte deles foi colocada em programas oficiais de colonização e acabou servindo de mão-de-obra barata, enquanto outros expulsos de suas terras seguiram para os municípios, também engrossando a força de trabalho disponível e barata para a agropecuária e o extrativismo, além de empresas nos centros urbanos. Há os que decidiram resistir e permanecer em suas terras ou ocupar áreas griladas ou improdutivas, em uma história que vai dos conflitos dos posseiros na região do Bico do Papagaio, Norte do atual Estado do Tocantins, na década de 70, até os projetos sustentáveis, como o de Anapu (pela qual morreu Dorothy Stang) e o de Nova Ipixuna (no qual tombaram Maria e Zé Cláudio há duas semanas).

Afinal de contas, como todos sabemos, se é um deserto, não tem ninguém. E matar ninguém, não é crime. Certo?

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto