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Ir a museu virou caça ao tesouro digital

Leonardo Sakamoto

14/10/2011 06h44

Será que as pessoas que visitam museus e exposições fotografando compulsivamente tudo o que aparece pela frente, ziguezagueando feito uma barata que cheirou uma carreira de coca, realmente se lembram do que viram um mês depois? Ou conseguiram dialogar com o artista? Será que ao menos elas estavam lá? 

Puxei conversa com um desses espécimes nesta quinta. Ele não tinha idéia quem era o autor, mas sabia que a obra era famosa, então, flash! – e saiu correndo para outra. Walter Benjamin iria ter espasmos de alegria se visse a cena.

Se isso o faz feliz, ótimo. Seguir modelos e regras é um porre. Só não me convide depois para contar da sua viagem e empurrar, goela abaixo, uma sequência de fotos (mal tiradas) de pinturas e esculturas.

Mas a visita tem um sentido diferente: é uma caça ao tesouro, cujo prêmio é poder mostrar, orgulhoso, ao colega de trabalho após as férias "tá vendo esse borrão disforme e irreconhecível? É a Capela Sistina. Era proibido, mas eu fotografei mesmo assim". A tecnologia aliada ao fetichismo vai nos deixando malucos.

Um sábio amigo me lembrou que pior do que sair fotografando obras de arte de forma alucinada é gravar shows inteiros de música no celular. "O cara perde o show e depois tem um arquivo tosco para colocar no Youtube e ninguém (ele incluído) ver nunca mais", desabafou. Durante o show do U2, fiquei curioso com uma moça que, braço estendido com o smartphone sobre sua cabeça, registrava tudo. De tempos em tempos, trocava o braço, provavelmente para fugir da cãibra. Ficava irritada se alguém pulava à sua frente. Afinal, o que achavam que era aquilo? Um show? 

Enfim, capturar é mais importante que sentir em um mundo em que ter é mais relevante que ser. A impressão é que a memória vai sendo transferida, paulatinamente, da cabeça para cartões SD, tornando-nos cada vez mais dependentes deles para recriar nossas vivências.

O mesmo se aplica a viajar. Para muitos, conhecer uma nova realidade é ir ticando uma lista de ícones – "pronto, já vi" – derivados de guias simplistas ou matérias de turismo duvidosas que reforçam a caça ao tesouro. Sem considerar, é claro, uma vida inteira de bombardeio de padrões pela mídia, em programas de auditório ou comerciais de TV, que deixavam claro que se foi à Roma e não visitou o papa (mesmo que ache aquilo um porre), você não viu nada, é um pária social. Quantos são os que têm coragem de dizer não e fugir da manada? Quantos conseguem fugir da programação a que foram submetidos por anos? 

Em tempo: outro amigo reparou, muito tempo antes que este missivista, sobre a peculiaridade dos safáris fotográficos em exposições de arte e criou o blog "Fotografando Quadros". Vale a visita. 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto