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Na Quarta-feira de Cinzas tudo volta ao normal

Leonardo Sakamoto

18/02/2012 12h24

A fantasia nova era seu orgulho. E ele, o orgulho dos pais. Espada de plástico, calça, colete, botas e lenço na cabeça – sem esquecer de um indefectível tapa-olho – faziam do menino um pirata no carnaval de rua daquela cidadezinha do interior. A mãe municiava seu pequeno corsário de confete, com o qual ele atacava, sem cerimônias, os transeuntes. Enquanto isso, o pai registrava tudo com uma câmera de vídeo digital – para a posteridade. Sabe como é, os filhos crescem rápido demais.

Sem que fosse sua intenção, um dos ataques de bolinhas de papel acertou em cheio um outro menino, fantasiado de catador de latinhas de alumínio. Fantasia sem graça aquela, feita por uma camiseta esburacada, bermuda encardida e pés descalços. Ao invés de uma reluzente cimitarra de plástico, cinco ou seis latinhas de cerveja carregadas na improvisada bacia formada pelos braços. O tamanho dos dois era o mesmo, tiquinhos de gente de seis anos, no máximo.

O menino fantasiado de catador de latinhas, que seguia em uma marcha firme, se detém. Sem dizerem nada, por um instante, se olham. O pirata deve ter pensado que fantasia estranha era aquela, cheirando a cerveja. Não seria melhor deixar aquelas latinhas ali e vir brincar com ele? Havia confete para todo mundo no saco da mamãe. E a rua era grande o suficiente.

O olhar do outro parou em misto de inveja e resignação – apesar dele não ter idade para entender o que é inveja, muito menos resignação. Ter um fantasia bonita e colorida como aquela seria bom demais. Não ter que trabalhar na noite de domingo, poder brincar com os pais, melhor ainda. Mas o tempo corria – o tempo sempre corre. Tinha que procurar mais latinhas porque a concorrência estava alta e a festa, como a infância, não ia durar muito mais tempo.

Virou o rosto para frente, continuou sua marcha e se perdeu na multidão. O outro ainda ficou parado um instante. Depois, enfiou a mão no saco de confetes e jogou novamente para cima, formando uma chuva de papel.

Afinal de contas, é carnaval. Na Quarta-feira de Cinzas tudo volta ao normal.

PS: Isso não é um conto, mas gostaria que fosse. Presenciei a cena há alguns anos e já a trouxe aqui. Não quero ser (mais) chato do que sou, adoro esta época do ano. Mas me lembro sempre daquele garotinho. Porque, assim como as festas de Carnaval no Brasil, situações como essa parecem não ter hora para acabar.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto