Você anda se irritando com qualquer coisa?
Leonardo Sakamoto
14/03/2012 03h37
Não me irrito com o fato de idosas senhoras serem deportadas de países amigos por não preenchem os requisitos desejados pelo governo após um longo tempo detidas para averiguação.
Nem por uma mulher ganhar menos que um homem exercendo a mesma função, com a mesma competência, na mesma empresa.
Nem com o atropelamento de ciclistas e pedestres por conta da ignorância coletiva de uma cidade motorizada.
Nem com o surgimento imediato de centenas de sem-teto após desocupações patrocinadas pela especulação imobiliária.
Nem com ruralistas que tentam aprovar leis que promovem terra arrasada nas florestas do país.
Nem com quem prega que índio é tudo bêbado e indolente, feito os "primos" deles, os bolivianos, que vêm emporcalhar a cidade.
Nem com quem defende a justificativa de crimes passionais para atenuar um homicídio.
Nem com pretensos deputados patriotas que acham que estão defendendo a nação ao passar a régua sobre direitos dos trabalhadores, rifando a qualidade de vida das futuras gerações.
Nem com aquela gente fina que sobe o vidro do carro ao ver um negro pobre no cruzamento.
Nem com amebas que acham que simplesmente tocar em uma pessoa com HIV positivo mata.
Nem com juízes que concedem autorizações para que crianças com menos de dez anos trabalhem e defenestrem sua infância.
Nem com autointitulados representantes do divino que adorariam ver mulheres que abortaram ardendo, não no inferno, mas por aqui mesmo.
Nem com quem pensa que sonegar nada mais é do que fazer justiça fiscal com as próprias mãos.
Nem com homens da lei que fazem bico de jagunços e tocam o terror, adubando o chão da Amazônia e da periferia de São Paulo com sangue.
Nem com idiotas que espancam gays nas ruas porque não conseguem conviver com a diferença.
Nem com pais e mães que acham que trabalho infantil enobrece o caráter.
Nem com militares da reserva que ficam tomando chá da tarde com bolinhos de chuva, falando mal da democracia e arrotando tortura.
Nem com o trabalho escravo e quem diz que ele não existe por lucrar com ele.
Nem com filhinhos-de-papai que queimam índios, matam mendigos e estupram meninas por aí, pois sabem que ficam impunes.
Nem com aquele pessoal funestro que prefere ver uma pessoa urrando de dor em uma cama de hospital ou sedada de morfina 24/7 do que lhe conceder o direito de finalizar a própria vida.
Nem com empresários de sorriso amarelo que, na frente das câmeras, dizem que vão mudar o mundo e, por trás delas, poluem, destróem, exploram, enganam.
Nem com administradores públicos que adotam políticas higienistas para expulsar os rotos e remendados das ruas das cidades.
Nem com aqueles que consideram uma aberração um casal do mesmo sexo adotar uma menininha linda.
Nem em quem bate em mulher porque acha que é homem.
O que me irrita, de verdade, e me tira do sério, é ver o meu Palmeiras não ganhar um título importante há tempos. Além, do trânsito, é claro.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.