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Por que gostamos tanto de enganar a nós mesmos?

Leonardo Sakamoto

04/04/2012 16h26

Não tenho a menor dúvida de que mentimos descaradamente em pesquisas de opinião.

Fui abordado nesta semana, de novo, por um pesquisador. Sei que a pessoa está trabalhando, mas também sei que minha paciência é do comprimento de uma planária. Então vou logo dizendo que sou jornalista. Porque, normalmente, jornalistas não podem ser ouvidos nessas pesquisas. Faltei nas aulas de estatística então não sei o motivo de sermos os párias das enquetes. Desconfio que seja porque há o medo de que manipulemos o resultado. Ou que saibamos como funciona uma entrevista e possamos jogar com o entrevistador.

(Pessoal, por Deus! Vocês acham que, individualmente, a gente tem essa capacidade? Se tivesse, encontrava uma maneira de convencer meus alunos a não se refestelarem no Facebook enquanto estou falando algo importante (sic) em sala de aula.)

Talvez a razão seja por não sermos um público confiável para pesquisas. Mas, aí, não é só para pesquisas. Você compraria um Palio 2009 de um jornalista que disse ter sido o único dono? Eu não. Nem de advogados.

Dessa vez, infelizmente ela não se importou. Até onde pude, falei a verdade.

Acumulo histórias ouvidas ou vividas em anos de estrada: a do escravo liberto que inventou mulher e filhos para ganhar empatia, a do chefe indígena ambientalista radical (que depois descobriu-se ser um grande vendedor de madeira ilegal), a do catador de material reciclável que narrou uma trajetória pessoal surreal só para ajudar o pobre repórter iniciante que estava com uma pauta-pepino nas mãos. Como, muitas vezes, a velocidade na linha de produção da imprensa dificulta aos operários da notícia irem fundo nas biografias daqueles que entrevistam, limitamos a conversa àquilo que consideramos suficiente. O problema, como me disse um professor de história oral, é que a vida nunca é suficiente.

O que fica é essa superficial conversa, muitas vezes construída sem o propósito de enganar. Apenas de tornar a vida mais interessante e palatável. É papel de um entrevistador profissional perceber isso, mas somos humanos e, portanto, erramos. Bastante. As únicas certezas dessa profissão é que vamos errar bastante, trabalhar muito e ganhar pouco.

Tenho a impressão de que, com pesquisas de opinião, ocorre a mesma coisa. Muitos respondem o que é mais socialmente aceito ou politicamente mais correto. Mas, na hora "H", optam pela saída mais confortável individualmente. Sei que isso já deve ser considerado em análise qualitativas, mas o que me interessa aqui não é o resultado, mas o processo.

É cool defender o verde e o consumo consciente. Pega bem. Mas, no momento sigiloso da caixa registradora, a sustentabilidade é defenestrada sem cerimônia.

Poucos se aventuram no preconceito aberto contra os gays quando podem ser julgados pela sociedade, mas, no anonimato dos comentários em um blog na internet, a intolerância se esbalda e se espreguiça. Quem eles pensam que são para se beijarem daquela forma nojenta na rua?

Em todas as pesquisas de opinião sobre racismo, os entrevistados dizem que não têm preconceito por cor de pele, mas que os outros brasileiros sim. Aí, na hora de fechar as contas, falta brasileiro para tanta discriminação.

(Da mesma forma, mas em sentido oposto, sou contra a descriminalização do aborto. Mas não concordo que alguém da minha família seja presa por abortar.)

Uns vão dizer que é medo de um olhar de reprovação, outros hiprocrisia. Há ainda os casos em que projetamos aquilo que gostaríamos de ser ou aproveitamos a deixa para mostrar ao outro que somos seres nobres – no que pese a verdade apontar para uma massa disforme de qualidades e defeitos, desgraçadamente desequilibrada, que até quer fazer aquilo que apontam como o certo mas tem que lutar contra a própria formação pessoal, séculos de capitalismo e quase dois mil anos de moral cristã.

Gostamos de ludibriar e mais ainda de sermos ludibriados. A verdade é que é mais fácil continuar tentando enganar incautos mocinhos e mocinhas entrevistadores de prancheta na mão do que encarar a verdade sobre nós mesmos.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto