Morte de jovem põe em discussão jornada médica em hospitais privados
Leonardo Sakamoto
20/04/2012 12h07
A morte de Marcelo, 13 anos, filho de Flávio Dino, ex-deputado-federal e presidente da Embratur, ajudou a expor a realidade de precarização do trabalho médico – que não se limita ao serviço público de saúde, mas avança pelos maiores hospitais privados em grandes cidades como Brasília, São Paulo e o Rio de Janeiro.
Quando Marcelo faleceu no dia 14 de fevereiro, após ter dado entrada no hospital com uma crise de asma (as razões ainda estão sendo investigadas em inquérito da Polícia Civil), a médica que deveria atendê-lo estava trabalhando há exatas 23 horas. Izaura Costa Rodrigues Emídio havia saído de um plantão de 12 horas na UTI no Hospital de Taguatinga, no dia 13 de fevereiro, às 19h, para cumprir mais outro turno até a manhã seguinte na UTI do Hospital Santa Lúcia, onde estava Marcelo.
Esta semana, Flávio Dino, que já foi juiz federal, entrou com representação no Ministério Público do Trabalho pedindo abertura de inquérito para apurar qual jornada os médicos vêm cumprindo no Santa Lúcia. "Em verdade, cuida-se de questão de interesse de toda a sociedade, já que profissionais exauridos, estressados, sem direitos básicos e cumprindo jornadas de trabalho similares às de 300 anos atrás, impactam diretamente na qualidade do serviço essencial que um hospital presta – podendo gerar danos irreparáveis ou de difícil reparação", argumenta Dino, em sua ação. "Ou seja, mais do que repercussões financeiras, as supostas "novas técnicas de gestão" e a ganância de maus profissionais acabam por ameaçar ou destruir vidas humanas – o que reforça a imprescindibilidade da atuação do Ministério Público".
Até mesmo a comprovação da jornada é difícil, já que o trabalho extenuante de médicos, enfermeiros e auxiliares é, muitas vezes, oculto pela terceirização que precarizou as relações de trabalho nos hospitais. Vale lembrar que a terceirização ilegal que é uma das piores chagas deste país, estando presente do menor desrespeito aos direitos trabalhistas ao trabalho escravo contemporâneo.
Uma simples pesquisa no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), mantido pelo Ministério da Saúde em sua página na internet, mostra que, a soma de diferentes vínculos empregatícios declarados por alguns médicos fazem a carga horária semanal chegar ao total de 204 horas semanais. Mas e você multiplicar 24 por 7 terá como resultado 168 horas. Está faltando dia na jornada médica.
Dino pediu tanto ao MPT quanto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que também analisem a terceirização excessiva nos hospitais. Para se ter uma ideia, em seu site oficial, o Hospital Santa Lúcia anuncia aos clientes que conta com "quase 1.200 profissionais" para atendimento.
Mas há apenas 31 médicos registrados no cadastro do Ministério da Saúde, nenhum deles com vínculo empregatício. Essa situação, além de ferir direitos trabalhistas dos médicos e demais profissionais de saúde, dificulta a regulação da carga horária.
Em 1998, o Santa Lúcia já havia sido obrigado a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta com a Procuradoria Regional do Trabalho se comprometendo a incorporar como funcionários os trabalhadores que prestavam serviço terceirizado de enfermagem dentro do próprio hospital. No mesmo TAC, comprometia-se a não mais terceirizar atividades-fim, tais como enfermagem. Não foi o único. Outros sete hospitais privados de Brasília tiveram de assinar TACs com o Ministério Público no mesmo período.
Mas os TACs parecem não ter surtido efeito. Na Justiça, o Santa Lúcia já foi réu em cerca de 400 processos trabalhistas. E, na maior parte das vezes, condenado a reconhecer vínculo empregatício com trabalhadores que atuavam terceirizados dentro do hospital. É o caso da enfermeira Leir da Silva Moura, que teve o vínculo reconhecido em 2011, num caso que foi considerado "terceirização ilícita", pela enfermagem fazer parte da atividade fim do hospital. Leir era funcionária do Santa Lúcia em 1991, quando, segundo ela, foi obrigada a tornar-se sócia da Enfermagem Centro Cirúrgico (ECC) S/C, que prestava serviços dentro do centro médico.
A precarização das relações de trabalho dificulta a fiscalização da carga horária. Em outro processo na Justiça do Trabalho, o hospital foi condenado a pagar provimentos atrasados à médica Denise Pires. Ela cumpria jornada regular das 13h às 19h30, sem intervalo, mas duas vezes por mês trabalhava das 7h às 19h30.
O grupo empresarial composto pelo Santa Lúcia e outros três hospitais no Distrito Federal continua a responder a inquéritos civis e ações trabalhistas por um modelo de gestão que fere direitos dos médicos e precariza atendimentos. Alguns podem elogiar modelos assim, dizendo que são um exemplo de administração e otimização de custos. Afinal de contas, é a economia, estúpido!
E enquanto mantemos antigas tradições, achando que os médicos conseguem produzir o mesmo diante de jornadas malucas de trabalho, mortes de jovens de 13 anos por asma serão apenas efeitos colaterais aceitáveis.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.