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Como empacar uma proposta no Congresso Nacional

Leonardo Sakamoto

09/05/2012 07h21

Brasília – Breve ato de como a Câmara dos Deputados adiou a votação da PEC do Trabalho Escravo. Se é assim com um tema como esse, imagine com outros que nem alcançam tanta repercussão na mídia, mas que dizem respeito ao seu cotidiano.

Cena 1

Centenas de trabalhadores rurais representando movimentos sociais e organizações sindicais de vários estados do Brasil enchem o auditório Nereu Ramos, no Congresso Nacional, para ouvir deputados e ministros falarem sobre a importância da aprovação da proposta de emenda constitucional 438/2001. A PEC, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado, destinando-as à reforma agrária ou ao uso social urbano, já foi aprovada pelo Senado em dois turnos e em primeiro turno pela Câmara. Desde agosto de 2004, está parada aguardando votação em segundo turno. Jovens acorrentados em protesto contra a permanência de formas contemporâneas de escravidão, cartazes, palavras de ordem, falas tão inflamadas quanto a natureza do problema pede. Câmeras de TV, fotógrafos, colegas jornalistas. Artistas que entram em nossas casas pelas novelas entregam um manifesto. Nele, entre outros que pedem a PEC, Chico e Caetano. A Avaaz traz uma petição com quase 60 mil pessoas. Marco Maia, presidente da Câmara, promete um esforço para colocar a PEC em votação e solicita aos presentes que se mobilizem, visitando gabinetes e conversando com deputados. Sentida a ausência de alguns partidos da base aliada do governo.

Flashback

No mês de março, em reunião com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, representantes de trabalhadores rurais ouviram a promessa de que a proposta de emenda constitucional 438/2001 seria colocada em votação até a semana do dia 13 de maio. Marco Maia (PT), presidente da Câmara dos Deputados, já havia se comprometido, na semana anterior, a colocar em votação. Afirmou que deveria escolher o dia 8 de maio para a votação. Em janeiro, Dilma Rousseff colocou a PEC como prioridade legislativa para o governo federal neste ano. Ela e mais 12 governadores eleitos assinaram, durante a campanha eleitoral de 2010, uma carta-compromisso prometendo atuar pela votação e aprovação da proposta.

Bastidores

Enquanto desenrola-se a Cena 1, rumores começam a circular pela Câmara. Deputados estariam pedindo a outros que não comparecessem à votação da PEC do Trabalho Escravo com o objetivo de esvaziar o quórum. Em tempos de espera do veta-não-veta-ou–veta–quanto de Dilma com relação ao Código Florestal, qualquer movimento pode ser interpretado como tentativa de barganha. Outros rumores contam da possibilidade da PEC entrar como moeda de troca do Congresso na decisão presidencial sobre o veto. Para proteger o meio ambiente tem que desproteger a dignidade do trabalhador e vice-versa?

Cena 2

Parlamentares que defendem a proposta e militantes de movimentos e organizações sociais visitam gabinetes e deputados no intuito de informá-los a respeito da PEC do Trabalho Escravo. Votos são angariados, caras-feias são recebidas. Deputados fogem do repórter do CQC que resolve perguntar sobre o problema. Todos sentem falta da articulação política do governo e de suas lideranças na Câmara. Estavam na casa? Sabiam que a PEC seria votada? A ministra Maria do Rosário ia de um lado para o outro, dialogando com representantes partidários, tentando buscar apoio para colocar a proposta em votação. Mas quem mais? Onde estava os líderes do governo na Câmara dos Deputados? Eles articularam durante as últimas semanas o que Dilma afirmou que seria prioridade? Se fosse sobre o Pré-Sal ou não essa PEC, mas o PAC, haveria a mesma presença de gente em nome do governo?

Cena 3

Uma reunião de líderes partidários recebe artistas como Letícia Sabatella, Marcos Winter, Leonardo Vieira e Osmar Prado e ativistas para pedir que a matéria fosse colocada em votação. Representantes de partidos, como o PMDB, o DEM e o PSD, com ruralistas em suas fileiras, não concordavam em colocar a pauta. Um dos motivos é de que não haveria consenso sobre o que seria trabalho escravo. Na opinião de quem? Da bancada ruralista, é claro. Para tornar a votação possível, estuda-se um compromisso. Uma vez que a PEC terá que voltar para o Senado por conta de imóveis urbanos terem sido acrescentados ao confisco previsto durante a primeira votação em agosto de 2004 e considerando que ela não poder mais sofrer alterações na Câmara na segunda votação, Marco Maia pediria para José Sarney, que lidera o Senado, para que fosse acrescentado a criação de lei específica sobre o tema. Segundo os ruralistas, o objetivo é clarificar e aumentar a segurança jurídica. Com esse acordo, os que eram contra colocar a PEC em votação na terça dizem que aceitam a pauta em plenário na quarta (9).

Cena 4

Logo depois da reunião, no plenário da Câmara, discursos contra e a favor da PEC são feitos. Alguns representantes de proprietários rurais afirmam que eles e seus partidos vão votar contra se ela for à votação. Assessores e analistas políticos não acreditam na aprovação em plenário e fazem contas. Outros afirmam que o objetivo é que se ganhe tempo no vai e vém entre Câmara e Senado para postergar a PEC. Há, por fim, aqueles que dizem que os ruralistas querem é aproveitar a situação para rever a definição de trabalho escravo, deixando a lei mais branda com quem se utiliza desse crime. Mesmo com toda a jurisprudência a respeito. Mesmo com o Supremo Tribunal Federal ter aberto processos contra um senador e um deputado federal por trabalho escravo, mostrando que entendem o que o conceito desse crime. Afinal, mais importante que a PEC do Trabalho Escravo é tornar o conceito uma coisa fraca. Talvez adotando – por exemplo – àquele vigente na época da colônia e do império, que usava grilhões e pelourinhos. Em outras palavras, ninguém é contra o trabalho escravo e, para garantir isso, mudaremos o conceito de trabalho escravo para algo que todos, inclusive os que já o usaram, aceitem. Ou, como diria Magritte, "Isto não é uma cachimbo". O presidente Marco Maia diz a jornalistas que a definição não está em jogo, mas apenas a regulamentação sobre o processo de confisco de terras. Mas não é o que as lideranças ruralistas propagandeiam pelos corredores da Câmara e o que propuseram ao governo. Fontes dizem que o governo federal deve se posicionar contra qualquer acordo que tenha a possibilidade de conter uma promessa de alteração do conceito de trabalho escravo no Senado.

Coro (não existiu, mas estava implícito)

Entra um trabalhador rural descalço e com enxada na mão acompanhado de um imigrante sul-americano com uma máquina de costura de baixo do braço. São observados por uma menina obrigada a trabalhar em um bordel em alguma cidade turística. Sussuram, acabrunhados:

O governo não tem base aliada no Congresso? Aliada de quem? Aliada de quê?

Cenas do próximo capítulo

A votação está marcada de novo para hoje. Ainda há tempo de um final feliz.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto