Um ano da morte de Maria e Zé Cláudio e o veto de Dilma
Leonardo Sakamoto
24/05/2012 08h02
José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes do projeto agroextrativista, Praia Alta Piranheiras, em Nova Ipixuna, no Pará, eram emboscados em uma estrada e executados com tiros na cabeça há exato um ano. Por denunciarem a ação de madeireiros ilegais, sofriam constantes ameaças e intimidações.
Naquela mesma tarde da morte, a notícia do assassinato foi lida no plenário da Câmara dos Deputados, que estava discutindo como transformar o atual Código Florestal em embrulho de peixe. Ouviu-se, então, uma vaia vinda das galerias e da garganta de deputados da bancada ruralista ali presentes.
Que a vida dos mais pobres não vale o esterco que o gado enterra na Amazônia, isso é público e notório. Ainda mais quando eles, através de sua união e organização, conseguem mostrar que é possível crescer economicamente e ser sustentável. Ou seja, quando provam que dá para respeitar leis ambientais, garantir renda própria e produzir alimentos para a sociedade. E, se isso funciona, por que mudar leis? Para que um novo Código Florestal?
Perdi as contas de quantos assassinatos iguais a esses na Amazônia noticiei nos últimos anos. E tenho medo de imaginar quantos mais ocorrerão, em vista das centenas de camponeses, trabalhadores rurais, sindicalistas, indígenas, ribeirinhos, quilombolas que ainda estão marcados para morrer por defender seu pedaço de chão. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza a morte de mais de 800 pessoas em função de disputas por terra no Pará desde a década de 70. Geralmente, apenas os casos que ganham atenção da mídia conhecem alguma solução. E, ainda assim, depois de muito tempo. E, mesmo assim, parcialmente, como Eldorado dos Carajás e Dorothy Stang.
A CPT, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura e o Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Nova Ipixuna divulgaram, nesta quarta, uma nota cobrando as autoridades da punição aos responsáveis do caso diante da situação do caso na Justiça e das condições em que se encontra o assentamento em o casal de agroextrativistas moravam. Segue um resumo:
Situação dos réus: Foram presos José Rodrigues Moreira (como mandante do crime), Lindonjonson Silva e Alberto Lopes (executores). Não há previsão para a realização do Tribunal do Juri.
Investigacão incompleta: Conforme escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, a decisão do assassinato não foi tomada apenas por José Rodrigues. "Gilsão" e "Gilvan", proprietários de terras no interior do Assentamento Praia Alta Piranheira, também estariam envolvidos no crime. Os dois não foram indiciados e nem denunciados.
Problemas não resolvidos: Com a repercussão internacional que o caso teve, o governo federal determinou que o Ibama fizesse um pente-fino na área. Fornos de fabricação de carvão foram destruídos e as serrarias ilegais fechadas. Com isso houve a paralisação do desmatamento da floresta por um tempo. O Incra, por sua vez, fez um levantamento para identificar a compra ilegal de lotes no interior do assentamento, mas não retomou as áreas ilegais. Nenhuma política pública foi implantada para melhorar a infraestrutura e a qualidade de vida das famílias do assentamento. Nenhuma providência também foi tomada para incentivar o extrativismo e a preservação da floresta. E, na medida em que as ações repressivas vão diminuindo, os produtores de carvão e os madeireiros vão retornando.
Ameaçados de morte: O governo determinou que a Força Nacional colaborasse na segurança dos ameaçados após o assassinato. Foi disponibilizada proteção para quatro lideranças no Pará até um mês atrás, quando a duas delas perderam a segurança. No Pará, onde o programa de defensores a direitos humanos está mais bem estruturado, não consegue atender 50% da demanda a ele apresentada. Laísa Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo, continua residindo no interior do assentamento, recebendo ameaças e sem nenhuma proteção.
Dois pesos, duas medidas: O Incra continua inoperante porque não tem recursos para a realização dos trabalhos e porque vem sendo manipulado para fins partidários e eleitoreiros. Os assentamentos continuam em estado de abandono: sem recursos para infraestrutura, projetos produtivos, assistência técnica. Os investimentos do governo na região estão centrados nos grandes projetos que beneficiam a expansão das grandes empresas de mineração, do agronegócio, da pecuária e de grãos sem qualquer perspectiva da melhoria de vida para a maioria da população. Com isso, a expansão da fronteira de exploração rumo ao interior da Amazônia ganha fôlego colocando em risco as áreas indígenas, as terras de ribeirinhos, os territórios de quilombolas, os assentamentos de reforma agrária e as áreas de proteção ambiental.
(Além disso, três madeireiras (Tedesco Madeiras, Madeireira Eunápolis e Madeireira Bom Futuro) e seus sócios que haviam sido acusados pelo casal de lideranças foram denunciados pelo Ministério Público Federal no Pará pela exploração ilegal de recursos florestais do assentamento. Também foram denunciadas seis pessoas, entre assentados que favoreciam o madeiramento ilegal e os administradores das empresas citadas.)
Agora que Dilma Rousseff deve informar o que decidiu vetar do Código Florestal aprovado pelo Congresso, parlamentares e representantes de associações de produtores jogam no nosso colo uma chantagem: o país tem que optar entre passar fome na sarjeta do mundo ou flexibilizar a legislação ambiental e ser feliz. Ou não ser tão severo com quem usou escravos e evitar a demarcação de territórios indígenas a fim de garantir sua soberania alimentar. Uma falsa escolha.
Não dizem nada sobre respeitar as leis ambientais sem chance para anistias que criem a sensação de impunidade do "desmata aí, que depois a gente perdoa". Ou soluções que passem pela regularização fundiária geral, confiscando as terras griladas, e a realização de uma reforma agrária, com a garantia de que os recursos emprestados pelos governos às pequenas propriedades – responsáveis por garantir alimento na mesa dos brasileiros – sejam, pelo menos, da mesma monta que os das grandes. Por preservar os direitos das populações tradicionais e de projetos extrativistas, cujas áreas possuem as mais altas taxas de conservação do país.
Em outras palavras, o projeto em Nova Ipixuna garante o sustento de centenas de famílias com a produção de óleos vegetais, açaí e cupuaçu. Ao invés de procurar formas de replicar esses modelos de sucesso, o Congresso Nacional criou maneiras de passar por cima de suas riquezas naturais e da qualidade de vida das populações que os mantém, rifando as leis que os protegem.
Por que? Siga os lucros e surpreenda-se. Ou não.
Nesta terça, a Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda constitucional 438/2001, que prevê o confisco de propriedades flagradas com escravos, em segundo turno – devolvendo a matéria ao Senado. Foram 360 votos a favor, 29 contra e 25 abstenções. Votação que só foi possível por conta da mobilização popular e da presença constante da imprensa jogando luz sobre o tema. Não sou eu que digo isso, mas o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Moreira Mendes (PSD-RO), em entrevista ao jornal Valor Econômico. Segundo ele, o ano eleitoral pesa, uma vez que muitos parlamentares vão concorrer à eleição municipal. Para ele, o voto contrário poderia ser entendido pela opinião pública como concordância com o trabalho escravo.
Trabalhadores rurais escravizados ou populações assassinadas por serem entraves a um determinado modelo de desenvolvimento não geram cabelos brancos em parte dos políticos. Mas a possibilidade de perderem seus cargos ou de serem criticados dentro e fora do país, sim. Teremos eleições municipais, mas também teremos a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. E depois Copa. E Olimpíadas. Trabalhadores da construção civil, que estão transformando o país em um canteiro de obras, já perceberam isso e vão às greves por melhores condições de vida. O lado bom de alguém ser vitrine é que pode virar vidraça.
E quando esse vidro se quebra, acreditem, o barulho tende a ser mais ensurdecedor do que uma vaia contra ativistas mortos no Congresso Nacional.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.