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E se os lucros das montadoras ficassem no Brasil?

Leonardo Sakamoto

03/07/2012 09h32

Montadoras estão planejando demitir, apesar do aumento de vendas trazido pela redução de IPI. General Motors e a Volkswagen abriram programas de demissão voluntária, sendo que a GM estuda fechar a linha de montagem de veículos de São José dos Campos e extinguir 1.500 vagas, segundo o sindicato de metalúrgicos local. A informação é de matéria publicada nesta terça (3) pela Folha de S.Paulo, apontando que as empresas estão preocupadas que isso seja euforia passageira.

Outra matéria, do jornal Estado de S. Paulo, aponta que, desde o início da crise econômica internacional, o governo abriu mão de R$ 26 bilhões em impostos para indústria automobilística. E, nos últimos três anos, as montadoras enviaram US$ 14,6 bilhões ao exterior, o que dá cerca de R$ 28 bi em valores de hoje.

Brasileiros e brasileiras, um valor semelhante à nossa renúncia fiscal foi exportada para ajudar a manter as matrizes dessas empresas que não haviam se preparado para lidar com a crise.

O governo não consegue garantir, de fato, que as montadoras aqui instaladas não demitam trabalhadores por conta desses benefícios. Muito menos consegue a autorização delas para que sejam colocadas na mesa outros temas importantes, como um controle mais rígido sobre a cadeia produtiva dessas empresas. Hoje, ao comprar um carro, você não tem como saber se o aço ou o couro que entrou na fabricação do veículo foram obtidos através de mão-de-obra escrava e trabalho infantil ou se beneficiando de desmatamento ilegal. Por que? Porque essas empresas não rastreiam como deveriam os fornecedores de seus fornecedores, apesar das comprovações de ilegalidades apontadas pelo Ministério Publico Federal e pela sociedade civil.

Quando anunciadas, essas políticas são consideradas a salvação da pátria. Mas a história mostra que as coisas não são tão simples assim. Até porque é exatamente nesses momentos que a indústria aproveita para fazer aquele ajuste tecnológico básico, tornando mais gente desnecessária.

Durante o pico da crise de 2008, a General Motors demitiu 744 trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos (SP) sob a justificativa de "diminuição da atividade industrial". Mesmo após ter recebido apoio dos governos da União e do Estado de São Paulo no sentido de facilitar a compra de seus produtos por consumidores. O setor também é beneficiário de recursos oriundos de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, pertencente aos trabalhadores.

Carpideiras do mercado disseram e escreveram, na época, que o Ministério do Trabalho e Emprego e sindicatos faziam uma chiadeira irracional, pedindo contrapartidas à cessão de linhas de crédito ou corte de impostos. Atestaram que empresas não podem operar esquecendo que estão inseridas em uma economia de mercado, buscando a taxa de lucro média para continuar sendo viável. Em outras palavras, defendiam que não dá para esperar que o capital seja dilapidado da mesma forma que o trabalho em uma crise.

Essa "regra do jogo" me faz lembrar um restaurante self-service. Você passa com a bandeja e escolhe o que quer e o que não quer para o almoço. O que é bom para você, coloca no prato. O que é ruim, fica para a massa se servir depois. Traduzindo: o Estado tem que garantir e ajudar o funcionamento das empresas, mas as empresas não podem sofrer nenhuma forma de intervenção em seu negócio. Um liberalismo de brincadeirinha, de capitalismo de periferia, com um Estado atuante, mas subserviente do poder econômico, em que o (nosso) dinheiro público deve entrar calado para financiar os erros alheios. Privatizam-se lucros (que depois são exportados), estatizam-se prejuízos.

O governo tem a obrigação sim de exigir contrapartidas de quem vai receber recursos ou benefícios devido à crise econômica – aliás, este é o momento ideal para isso. Quando as empresas estiverem surfando novamente, após este ciclo recessivo mundial passar, vai ser mais difícil colocar cartas na mesa como agora.

Em momentos de crise como esse é que direitos trabalhistas e sociais têm que ser reafirmados, garantidos, universalizados e não o contrário. Pois é nesta hora que a população que sobrevive apenas de seu salário está mais fragilizada. E é em momentos como esse que sabemos quem é socialmente responsável e não aquelas que fazem propagandas na TV com carros cruzando lindas estradas cheias de macacos-prego-do-piercing-amarelo para mostrar é verde.

Em 2008, li depoimentos de montadoras dizendo que os trabalhadores tinham que entender que esta é uma crise global e muitas de suas sedes estão passando sérias dificuldades, correndo o risco, inclusive de fechar. O que é mais um caso self-service. Lembro um exemplo que pode ser ilustrativo: um dia, questionei a Ford, nos Estados Unidos, sobre o porquê de não atuar de forma mais incisiva para evitar que suas subsidiárias em países como o Brasil estivessem inseridas em cadeias produtivas em que há crimes ambientais ou trabalho escravo. Como resposta, disseram que há independência entre as ações da matriz e das subsidiárias e que as matrizes não podem interferir, apenas pedir que atuem de acordo com a legislação.

Ótimo! Tá resolvido o problema. Pois, elas não vão se incomodar se o Brasil regular o envio de remessas de lucros para o exterior, utilizando os recursos para ajudar a passar a tempestade de forma mais suave por aqui. E não estou falando em reestatizar a nossa renúncia fiscal porque o leite já foi derramado, mas de que as empresas invistam mais por aqui. De uma forma diferente, reorganizando o setor em padrões mais sustentáveis, por exemplo. Seria um bom momento para mudar a matriz de produção em direção a algo com menos impacto social e ambiental (o Estado poderia fazer isso diretamente, mas prefere injetar recursos em atores que professam modelos de desenvolvimento antigos e depois pede calma em encontros como a Rio+20 – vai entender).

Afinal de contas, já que muitas empresas não se incomodam tanto com a qualidade de vida dos trabalhadores em toda a sua cadeia de valor (da produção do carvão ao chão de fábrica), por que se incomodariam com o resultado dos lucros desse trabalho, não é mesmo?

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto