Sobre a obrigatoriedade do diploma para exercício do jornalismo
Leonardo Sakamoto
20/08/2012 09h17
Sempre defendi o fim da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, confirmado pelo Supremo Tribunal Federal em junho de 2009.
Neste mês, o Senado aprovou em segundo turno, por 60 votos a 4, a proposta de emenda constitucional 33/2009 que torna necessário, novamente, o diploma. A PEC ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados, mas há uma chance da obrigatoriedade voltar, o que tem feito algumas pessoas chiarem, outras comemorarem. Li algumas análises de colegas, com posições de um lado e de outro, e resolvi retomar alguns pontos que, há tempos, martelei por aqui.
Tenho plena convicção de que a atividade jornalística não deve ser monopólio de quem é diplomado, podendo ser realizada por quem não passou por uma cadeira de faculdade. Um professor de jornalismo falando isso pode ser um pouco chocante, eu sei, mas vamos aos fatos. Conheci, andando por esse Brasil, muita gente que nunca viu um diploma, mas que é mais jornalista com um microfone de uma rádio comunitária na mão, fazendo um pequeno jornal mural ou com um pequeno blog de notícias do que alguns que passaram quatro anos nos bancos de universidades e hoje refestelam-se atrás de cartões de visita, bloquinhos timbrados e um nome conhecido – seja de redação grande ou pequena. Refletir sobre sua própria prática, dentro de uma ética específica, sabendo o que significa o papel de intermediar a informação na sociedade e ter a consciência dos direitos e deveres atrelados à liberdade de expressão são desafios que não são aprendidos necessariamente na academia. Ou em uma redação.
Ao mesmo tempo, com as novas tecnologias da comunicação e a possibilidade de todos se tornarem difusores de notícias e analistas de fatos, o nosso jornalismo está tendo que se reinventar. A decisão do STF veio em um momento interessante, de mudança.
O que não significa, contudo, desprezar a escola de jornalismo como local de estudo, pesquisa e reflexão da profissão e de seu ethos. Técnicas podem ser passadas no dia-a-dia de uma redação e em cursos de treinamento de jornalistas das empresas de comunicação. É a parte fácil da formação. Mas há outras coisas que o mercado não entende ou permite (pois passa pela subversão de seus próprios princípios) que precisam de um local para florescer. Falta muito para que tenhamos escolas de jornalismo que sejam um espaço real de debate e contestação e não de reprodução de modelos. Locais que não produzam tijolos para muros ou engrenagens para máquinas… Mas isso não significa que esses locais não precisem existir.
O curso superior ou de pós-graduação continuará tendo sua função e, hoje, se tivesse que escolher, faria novamente a faculdade, mesmo com as deficiências, os problemas e a falta de vontade de professores e alunos, com os quais a gente tem que se deparar. E com minha própria arrogância de não entender tudo o que tentaram me dizer (a gente acha que sabe tudo aos 18…)
Não quero tentar esgotar esse tema, que é vastíssimo. Até porque também deveria ganhar importância a discussão sobre outras maneiras de formar profissionais, com espaços para reflexão da profissão para além daquela oferecida pelo curso superior, como em outros países. Outro debate importante é que já passou do tempo de nossa categoria aceitar em seus sindicatos, em definitivo, quem não tem diploma. Muitos destes trabalham e lutam pela dignidade da profissão, mais do que vários que ostentam seus certificados em moldura dourada, mas não são reconhecidos pelos próprios colegas.
O que me deixa um tanto quanto cabreiro é que, neste momento, em que o debate saudavelmente ganha a arena pública por conta do avanço da proposta no Congresso, a tentativa de fazer valer um ponto de vista ou outro está sendo feito com base em argumentação questionável. Na época da votação no STF, o ministro Gilmar Mendes, na defesa do fim da obrigatoriedade, afirmou que "a profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade tais como medicina, engenharia, advocacia – nesse sentido por não implicar tais riscos não poderia exigir um diploma para exercer a profissão". Na última semana, li diversos colegas usarem a mesma linha de raciocínio, verificando que Gilmar fez escola ou aprendeu com ela.
(Antes de mais nada, perguntar não ofende: se não oferece perigo, por que ele reclama tanto de nós?)
Discordo dessa linha de argumentação. Na minha opinião, ter um diploma em jornalismo não significa exercer a profissão com mais ou menos ética – considerando que a maioria de nós, que fazemos grandes besteiras, frequentamos faculdades. Mas, sim, o exercício do jornalismo pode causar danos mais amplos, profundos e duradouros do que a queda de uma ponte ou um erro médico. A incompetência, preguiça ou má fé de nós, jornalistas, pode acabar com vidas de um dia para noite, ajudar a derrubar governos, detonar guerras, justificar genocídios. E a capivara de crimes cometidos por nós, jornalistas, seria melhor conhecida se não fossemos os responsáveis por fazer a informação chegar à mesma sociedade que nos condenaria. Afinal, fomos os iluminados que fizeram a ponte entre a notícia e você. Até agora, é claro, pois está sendo muito didático para muita gente ter as matérias desmentidas em rede e online…
A profissão com maior potencial de dano não é o cerne da discussão. Muito menos se estudar o jornalismo em uma faculdade é fundamental ou não. E sim de que forma nós, jornalistas, podemos garantir que a sociedade receba a melhor informação possível para tomar suas decisões, com ou sem diploma, com ou sem uma empresa de comunicação por trás. Ou como garantir, de fato, que nós, jornalistas, sejamos responsabilizados por danos causados a terceiros erroneamente. E como nós, jornalistas, possamos nos enxergar como trabalhadores e não como patrões – sim, somos trabalhadores de uma categoria, apesar de não nos reconhecermos como tal. E, talvez o mais importante, como fazer com que nós, jornalistas, possamos entender que não somos observadores independentes da realidade. Somos parte do tecido social, quer gostemos dele ou não.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.