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O "jornalista-salame" e a cobertura embutida do combate ao crime

Leonardo Sakamoto

14/10/2012 16h26

"Se morreram, é porque são bandidos", disse um comandante. "Todos são suspeitos até que se prove o contrário", afirmou outro. "Foi igual a dar tiro em pato no parque de diversões", resumiu um policial civil. "Quem não reagiu está vivo", explicou um governador. Estamos em guerra contra o crime, contra o tráfico de drogas, contra tudo que vá de encontro ao nosso estilo de vida. Ninguém explicou, contudo, que quando – paradoxalmente – se deflagra uma guerra contra a violência, vamos deixando para trás os valores que nos fazem humanos a cada batalha. Nesse processo, os fins acabam por justificar os meios e nos furtamos de questionar as autoridades sobre as aberrações que ordenam ou cometem. No fim, o Estado acaba por se igualar a aquilo que queria combater.

Na invasão norte-americana do Iraque, popularizou-se a figura do jornalista "embutido", que segue as forças armadas, veste o mesmo uniforme e vê e registra apenas o que o governo quer que seja visto e registrado. Na prática, faz as vezes de relações públicas da força de ocupação e, portanto, a anti-reportagem. Com algumas adaptações, parece que a figura do "jornalista-salame" se repete por aqui em ações policiais em comunidades pobres, por exemplo, na cobertura da implantação de algumas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), no Rio de Janeiro. Com a diferença que, na invasão iraquiana, a ideia do "nós" contra "eles" soava menos contraditória.

De tempos em tempos, a violência relacionada ao tráfico de drogas retorna com força ao noticiário, normalmente no momento em que ela desce o morro ou foge da periferia das grandes cidades. Ou para servir de justificativa a operações de ocupação e remoção de favelas, em que não se esconde um claro viés de "limpeza" social. Afinal de contas, a mira dos agentes de segurança deve ser tão afiada quanto a sua língua. Pois acertar um tiro na nuca de um suspeito no meio de um confronto armado demanda muita destreza. Ou covardia – nesse caso com o tiro sendo dado pelo representante do Estado de forma sumária, com a pessoa já rendida e de costas. Eu combato, eu julgo, eu executo.

Enquanto isso, o jornalista-salame faz silêncio ou justifica o injustificável. Por ignorância, má fé, incompetência, falta de tempo, cumprir ordens ou para não melindrar os "homens de bem" da cidade.

Isso quando não mantemos o silêncio quando um jornalista sofre por não se embutir. Como já escrevi aqui, o coronel Paulo Telhada incitou seguidores no Facebook contra o repórter André Caramante, da Folha de S.Paulo, por conta da reportagem "Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook". O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo chegou a encaminhar a autoridades um documento solicitando proteção para o jornalista. As postagens na rede social levaram o Ministério Público a pedir a impugnação de sua candidatura, mas nada foi decidido ainda. E, enquanto isso, Caramante vive um exílio forçado.

A imensa maioria dos corpos contabilizados nessa batalha sempre é de jovens, pardos, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas ou pelas leis do tráfico. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia-a-dia. Atacar a estrutura do tráfico e sua sustentação econômica é uma saída. Porém, será inócua se não houver mudanças estruturais que garantam dignidade para os moradores e outras opções de vida para os jovens que saem em um busca de um lugar no mundo todos os anos.

Para tanto, faz-se necessária uma cobertura mais crítica e contundente do poder público em suas ações de combate à criminalidade, mostrando como o problema vem se resolvendo de forma estrutural e se as camadas mais pobres da população vêm sendo respeitadas. Pois se acreditarmos que as coisas vão bem porque tem mais "bandido" morrendo, quando percebermos que estávamos enterrando a própria sociedade já será tarde demais.

Atualizado às 19h30 do dia 14/10/12 para inclusão de informações.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto