Ao invés de abolir, o Brasil está exportando "quarto de empregada"
Leonardo Sakamoto
27/10/2012 09h13
Incomoda-me bastante que muitas plantas de apartamentos ainda tenham o "Quarto de Empregada" destacado, ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Como já disse aqui anteriormente, a crítica pode parecer besta, mas isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da escravidão oficial, que moldou o nosso país. Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem me irrita. Peço perdão aos amigos que, por contingências do emprego, utilizam esse tipo de serviço, mas creio que retomar a análise é válido.
– Ah, mas ela é minha empregada e não uma pessoa da família.
Tenho vontade de jogar um litro de cândida na cabeça da "sinhá" que solta um "minha" empregada, como se fosse uma tábua de passar roupa, um objeto pessoal. Bem, daí você já retira o naipe do interlocutor.
– Ah, e onde você quer que ela durma? Junto com as outras pessoas da casa?!
O ideal seria que ganhasse o suficiente para ter sua própria residência (lembrando que as empregadas domésticas contam com menos direitos trabalhistas que o restante dos trabalhadores), que não morasse nas franjas da cidade (para onde empurramos sistematicamente os mais pobres) e pudesse se deslocar para o emprego por um sistema de transporte coletivo de qualidade. E, nos casos eventuais de dormir na casa dos patrões, deveria compartilhar um espaço mais digno que o furúnculo da casa, por exemplo, um cômodo como os dos demais moradores ou um quarto de hóspede. Você manda o seu hóspede dormir ao lado da máquina de lavar?
– Ah, mas ela prefere assim, pois se sente mais à vontade. Lá vê a novela.
Ah, pelo amor de Deus! Quem está acostumado à exploração, e não tem consciência disso, automaticamente se refugia no lugar em que, acredita, dever pertencer. Noves fora que há famílias que realmente não fazem o mínimo esforço para que a pessoa se sinta como igual. E, como sabemos, a novela só passa na TV do quarto de empregada.
Mudar isso significa um aumento no custo do trabalho doméstico que vai impactar diretamente no custo de vida de uma parcela da população, pressionando por aumento de salários de quem utiliza esses serviços e gerando demandas junto a empresas e governos. Mas se ignorarmos os direitos dessas trabalhadoras, estamos considerando que uma sociedade pode (continuar a) aceitar basear o seu crescimento sobre o esfolamento de um determinado grupo.
O ideal seria que transformações ocorressem baseadas em um processo de conscientização, mas – como sempre – isso virá como consequência de outras lógicas sociais e econômicas. Grande parte das mulheres mais pobres das novas gerações preferem outros empregos mesmo que opressores e mal remunerados (como atendentes de telemarketing) do que tentarem a sorte empregadas domésticas. Querem fugir do estigma social impostos às suas mães e avós, além de contarem com melhor formação educacional.
O custo de usar os serviços de uma empregada que durma no emprego está cada vez maior e, assim como aconteceu em outras partes do mundo, chegará o dia em que ficará proibitivo para uma grande camada da população. Nesse momento, muitos terão que dar um jeito de tocarem esses afazeres por si, demandando das empresas mais tempo livre, com redução de jornada, por exemplo.
Não é à toa que cresce o número de empregadas de países sul-americanos, como Bolívia e Paraguai. Elas não cruzam a fronteira apenas para se acabar de trabalhar em oficinas de costura, ocupando uma função que interessa cada vez menos os jovens brasileiros. Seguem também para residências.
E enquanto importamos mão de obra, os mais endinheirados – que continuarão por aqui com seus quartos de empregada – já exportam "habitações de serviço" para outros países…
O gancho de trazer novamente este assunto foi a coluna deste sábado (27) da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo. Como sempre, vale a leitura pela deliciosa ironia que permeia o seu texto:
"Quartos de empregada para brasileiros em Miami", coluna de Mônica Bergamo
Dona da Halmoral Group, que vende imóveis de Miami (EUA) para brasileiros, a empresária Gabriela Haddad diz que foi ela, e não Yael Steiner, diretora do Centro da Cultura Judaica, quem traduziu a expressão "habitação de serviço" para "quartinho de empregada" em leilão beneficente realizado pelo CCJ nesta semana. Quem comprasse um apartamento por R$ 6,4 milhões ganhava um crédito da incorporadora que poderia reverter para o centro.
Steiner disse que a informação, publicada pela coluna, era "boba e mentirosa". "Inventar e ironizar negativamente como se fossemos fúteis e ridículos e na minha boca ainda?" Disse também que "jamais faria comentário vulgar e discriminatório".
A frase foi dita. Ao assumi-la como sua, Gabriela Haddad disse que era necessário explicar "o contexto".
O quarto de empregada é um diferencial importante do prédio apresentado, o Boutique Chateau Beach, que fica em Sunny Isles, Miami. É que, lá, esse tipo de habitação não existe. As funcionárias domésticas não dormem na casa dos patrões nem ficam à disposição 24 horas por dia, como muitas vezes ainda ocorre no Brasil.
"Eu trabalho em Miami há 20 anos. Houve um boom de brasileiros comprando imóveis lá [na década de 90], quando o dólar custava um real", afirma. "E os incorporadores pediam dicas sobre o que o brasileiro gostaria de ter no apartamento. Eu disse: 'Quarto de empregada!"'
Os brasileiros que compram apartamentos em Miami "levam cozinheira, babá, motorista". Para abrigá-los, têm que reformar os imóveis. "Tem gente que compra dois apartamentos e junta só para fazer a habitação de serviço", explica Gabriela.
"Não são só os brasileiros que gostam. Todo sul-americano está habituado com isso", diz a empresária. "Só que, nos EUA, eles não estão acostumados. É o país deles. Então, poucos prédios têm o quarto de empregada." No máximo, "uns cinco, o que para Miami não é nada". Os que têm o diferencial "são muito concorridos".
Gabriela Haddad acredita que foi possivelmente a primeira a dar a preciosa dica para as incorporadoras de Miami que querem conquistar os brasileiros -que nesta década voltaram a comprar na cidade. "Eles adoram, acham bárbaro", afirma a empresária.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.