Em greve, os estudantes da PUC-SP dão uma aula de democracia
Leonardo Sakamoto
15/11/2012 11h47
Professores, funcionários e alunos da PUC-SP decretaram greve em protesto contra a nomeação da professora Anna Cintra para o cargo de reitora. Ela havia ficado em último lugar na lista tríplice resultante das eleições diretas realizadas no mês de agosto.
A reitoria chegou a ser ocupada pelos estudantes mas devolvida simbolicamente ao atual reitor, Dirceu de Mello, reeleito pelo voto, mas preterido pelo cardeal arcebispo de São Paulo Odilo Scherer, grão-chanceler da instituição. As assembleias de estudantes vem reunidos centenas de pessoas e uma audiência pública está marcada para a próxima semana.
A meu ver, a discussão não é se ele poderia ou não ter escolhido a última colocada. De acordo com o frio papel das regras escritas por poucos, sim, poderia.
Da mesma forma que a ex-reitora Nadir Kfouri poderia ter estendido a mão quando o coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública de São Paulo, baixou o cacete nos estudantes da PUC, ferindo muitos e prendendo outros tantos, em setembro de 1977. Poderia. Mas não fez. E ainda por cima, sob o risco de ser presa, o chamou de assassino.
As decisões difíceis de serem tomadas são exatamente aquelas que afetam nossa segurança individual ou os interesses do grupo do qual fazemos parte. Como negar algo para família, amigos e colegas e aceitar o que pede uma coletividade que não vai te amar por conta de sua escolha? Amar ao próximo como a si mesmo é fácil. Difícil é encontrar no outro, no distante, uma pessoa detentora de direitos, que merece ter sua vontade respeitada e sua dignidade garantida. Mesmo que eu não a conheça. Mesmo que ela não vá com a minha cara.
Democracia é algo gostoso de ser pronunciado, mas difícil de acatar. Porque o seu resultado não é, necessariamente, aquilo que esperamos que seja. Pode não ser o melhor ou mais preparado, na minha opinião, que é conduzido a um cargo, mas sim aquele que a maioria acredita ter essas qualidades. A maioria pode estar errada, claro. Mas faz parte do processo histórico ela perceber isso por conta própria e não ser guiada por alguns iluminados que acreditam conhecer a História do começo ao fim. A beleza da democracia está na divisão de responsabilidades, principalmente as decorrentes do fracasso.
Nesse sentido, falha o grão-chanceler por não deixar que a universidade continue realizando essa caminhada, sem ser tutelada ou vítima de intervenção.
Foi por essa democracia que lutou Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo entre 1970 e 1998. Um homem de fé, mas também de ação, que optou por uma defesa incondicional da dignidade humana e das liberdades individuais, incluindo o direito de escolher e ser escolhido, de participar e ser ouvido. Foi contra os grandes teatros de cartas marcadas da ditadura, que emulavam uma democracia inexistente.
De certa forma, a escolha da pessoa que foi preterida pela comunidade universitária como sua nova líder após o engajamento de milhares de pessoas em um processo eleitoral gera o mesmo sentimento daqueles teatros. Nós fomos atores, apenas não sabíamos disso.
Há muito a PUC não pertence apenas à Igreja Católica, mas à população brasileira. Tornou-se parte de sua história como um local de livre circulação de ideias e de pessoas, de progressistas a conservadores, como uma universidade deve ser. Afinal de contas, uma instituição não se faz através de um ordenamento de cima para baixo, mas pela sobreposição diária de ideias e suor, da base ao topo.
Desde que comecei a lecionar Jornalismo na PUC-SP, há pessoas que acham um absurdo uma universidade católica ter, entre seus quadros, um professor que defende o direito ao aborto e à eutanásia, o Estado laico, a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo, o Palmeiras, enfim, o direito a ter direito. São uma minoria, mas uma minoria influente.
Uma das reclamações veio do então bispo emérito de Guarulhos, o falecido Luiz Bergonzini: "Se a PUC é da Igreja Católica, deve seguir o Evangelho e a moral cristã. Não pode ter em seu corpo docente professores contrariando os ensinamentos da Igreja Católica, dentro ou fora da sala de aula". Mas não apenas contra mim: "No ato da matrícula, os alunos assinam o compromisso de obedecer o regimento interno. A partir daí, eles estão obrigados a cumprir as regras da PUC. Se forem adeptos do aborto, da eutanásia, da ideologia homossexual, da liberação das drogas, do comunismo, podem procurar faculdades com essas ideias para estudar".
A PUC e sua direção, pelo menos no que diz respeito ao uso que fazemos de nossa liberdade de expressão, têm adotado um comportamento que se espera de uma universidade, garantindo o debate, o livre pensamento e a pluralidade de opiniões – mesmo que em desacordo com o que prega a fé católica. Os que pedem o silêncio ao invés da troca entre diferentes continuam não entendendo nada do que está na origem de sua própria religião, da mesma forma que aqueles que vieram antes deles na Contra-reforma.
Se fosse adotado o padrão proposto pelo então bispo de Guarulhos, a bem da verdade é que não sobraria muita gente para lecionar, estudar ou trabalhar por lá.
Qualquer tentativa de tornar a PUC uma universidade em que o conhecimento esteja subordinado à fé, como defendem alguns, negando um diálogo independente entre ciência e religião, levará ao fim melancólico da ideia de liberdade que mantém os muros da universidade de pé. Da mesma forma, romper as tradições democráticas que foram forjadas a duras penas, inclusive com sangue de alunos, professores e funcionários, é uma afronta não apenas à história da instituição, mas do próprio país.
Os alunos foram os primeiros a parar, nesta terça (13), tão logo ficaram sabendo da nomeação da última colocada como reitora. Inundaram o campus da rua Monte Alegre em um mar de gente, como há muito não se via, dizendo "não" – ideia simples, mas poderosa. Engajaram-se de uma forma maior que os professores no processo. Com a insatisfação declarada, a nomeada irá resignar ou o cardeal mudará de ideia? Só Deus sabe. Contudo, enquanto os mais novos puxarem os mais velhos por lá, tenho certeza de que a PUC continuará fazendo sentido por muito tempo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.