"Tinha que ser preto mesmo!" e a nossa ignorância diária
Leonardo Sakamoto
20/11/2012 10h47
Tinha que ser preto mesmo!
Preto quando não faz na entrada faz na saída.
Sabe quando preto toma laranjada? Quando rola briga na feira.
Amor, fecha rápido o vidro que tá vindo um escurinho mal encarado.
Olha, meu filho, não sou preconceituoso, não. Até tenho amigos negros.
Ouviu aquele batuque? É um terreiro de macumba. Logo aqui na nossa rua! Mas o João Vítor vai dar um jeito nisso, ele conhece uma pessoa na subprefeitura que vai tirar essa gente daí. Essas coisas do diabo me dão arrepios.
Eu adoro o Brasil porque é um país onde não existe racismo como nos Estados Unidos. Aqui, brancos e negros vivem em harmonia. Todos com as mesmas oportunidades e desfrutando dos mesmos direitos.
Se eu deixaria minha filha casar-se com um negro? Claro! Se ela conhecer um, poderá sem sombra de dúvida.
Tá tão difícil encontrar uma empregada decente ultimamente. Ainda bem que achei a Maria. Ela é de cor, mas super honesta.
Quilombolas são pessoas indolentes. Erra o governo ao mantê-los naquele estado de selvageria. A terra poderia estar sendo usada para produzir algo, sabe? Ainda mais com tanta gente vivendo apertada em favelas! É o Brasil…
Vê se me entende que eu vou explicar uma vez só. A política de cotas é perigosa e ruim para os próprios negros, pois passarão a se sentir discriminados na sociedade – fato que não ocorre hoje.
É aquele ali, ó. Sim, o "moreninho".
Meu filho não vai fazer um projeto de escola sobre coisas da África. A gente é evangélico e queremos que ele leia a bíblia e não esses satanismos como… como…como era o nome daquele livro mesmo que a professora passou? Sim! Macunaíma.
Cotas ameaçam o princípio de que todos são iguais perante a lei, o que temos conseguido cumprir, apesar das adversidades.
Ele é um exemplo. É negro e, mesmo assim, virou ministro do Supremo Tribunal Federal sem ajuda de ninguém.
No 20 de novembro, quando se rememora a morte de Zumbi dos Palmares, é celebrado o Dia da Consciência Negra em várias cidades do país. Um momento de reflexão e de resistência sobre os frutos da escravidão, de um 13 de maio incompleto (que significou mais uma mudança na metodologia de exploração da força de trabalho do que uma abolição de fato), sentido no dia a dia. Dia que deveria ser aproveitado por todos aqueles que têm seus direitos fundamentais rasgados para uma análise mais profunda do que têm feito para sair da condição de gado.
Alguns vão dizer que o tema é repetido neste blog. Mas era preciso.
Porque a nossa idiotice não tem limites. E a ignorância é um lugar quentinho.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.