"Piranhas!" - gritaram os jovens de BMW prata na noite de São Paulo
Leonardo Sakamoto
09/12/2012 12h43
Quando fui alvejado por xingamentos por jovens machistas motorizados, protótipos de "homens de bem" desta capital paulista, e relatei a história em um post, leitores disseram que isso era um caso isolado. Resquícios de um passado truculento que, em breve, se tornaria história. E que eu estava, novamente, procurando pelo em ovo com o intuito de atacar a vilipendiada e incompreendida classe média alta que habita este Planalto de Piratininga.
Estive em uma festa na região da rua Augusta na noite deste sábado (#sakamotobaladeiro). Lá pelas 4h da manhã, já de saída, tive a oportunidade de presenciar dois carros, descendo em disparada a rua Bela Cintra, que reduziram a marcha para elogiar um grupo de mulheres que conversava na calçada. A plenos pulmões, soltaram acalantos como "vagabundas", "vadias" e "piranhas". Um deles, um BMW prata, ainda lançou uma latinha de cerveja na rua quando arrancou, cantando os pneus, alguns metros adiante. Phino. Outros rapazes que estavam na calçada sorriram com os impropérios, no que me pareceu uma pontinha de inveja reprimida.
Convivo com cenas patéticas, como essa, com uma infeliz frequência. Afinal de contas, moro em São Paulo e, pertencente à mesma classe média alta que critico, seria impossível não me deparar com esse universo bizarro de jovens mimados que acham que a cidade é uma extensão da tela do seu videogame, as ruas, um anexo do banheiro que usam pela manhã diariamente e o carro, uma continuidade do seu pênis. Ou complemento, o que varia de acordo com a forma com que cada um encara suas frustrações.
Para eles, provavelmente não se enquadram na categoria de "vagabundas" apenas suas mães e avós, que dormem o sono das santas católicas, enquanto quem é "da vida" povoa a madrugada. Porque "mulher de bem" está dormindo a essa hora, não aceitaria nunca colocar um vestido acima do joelho e deixar as costas de fora, não bebe, fuma ou tem vícios detestáveis, não ama apenas por uma noite e não ri em público, escancarando os dentes a quem quer que seja. "Mulher de bem" permanece em casa para servir o "homem de bem" e estar à sua disposição como empregada, psicóloga, enfermeira, cozinheira ou objeto sexual, a qualquer hora do dia e da noite. Por que? Porque, na sua cabeça, elas pertencem a eles. Porque assim sempre foi, é assim que se ensinou e foi aprendido. É a tradição, oras! E o discurso da tradição, muitas vezes construído de cima para baixo para manter alguém subjugado a outro não pode ser questionado.
Nesse sentido, quem ousa sair desse padrão, pode ser vítima de alguns "corretivos sociais". Reclamamos de estúpidos muçulmanos que, do alto de uma interpretação bisonha do Corão, atacam mulheres que resolveram ser independentes, mas acabamos por fazer o mesmo aqui. Não é a contundência de um vidro de ácido lançado no rosto de quem deixou a burca ou o shador em casa. Mas pode corroer tão fundo quanto e deixar marcas que podemos não perceber.
Não porque as mulheres do caso da Bela Cintra se deixaram abalar com as crianças de BMW, pelo contrário, continuaram conversando. Até porque devem ter que aguentar esse tipo de coisa sempre, dado o fato desse comportamento idiota ser marca carimbada de parte de nossos jovens.
Esse tipo de ataque verbal é sim uma forma de violência sexual. E das mais perversas porque, como tal, não são encaradas. Ainda mais porque jovens ricos, bêbados ou não, não cometem crimes, apenas fazem "molecagens" e, portanto, fora de cogitação qualquer punição. Isso se aplica apenas a moços pobres que ofenderem alguém rico na rua. Afinal de contas, eles têm que ser colocados no seu devido lugar.
E não se engane. Não é só meia dúzia de celerados. Ataques como esse traduzem o que parte da nossa sociedade machista pensa. Que uma mulher que conversa de forma simpática em uma festa está à disposição, que uma mulher que se veste da forma como queira está à disposição, que um grupo de mulheres sem "seus homens", andando na noite em São Paulo, está à disposição. Depois perguntam o porquê de Marchas das Vadias acontecerem ao redor do mundo para protestar pelo direito de viver da forma que melhor convier.
Como já trouxe aqui, o homem precisa começar a entender que tem direito ao afeto, às emoções, a sentir. Passar a ser homem e não macho. Começar a mexer na sua programação que, desde pequeno, o ensina a ser agressivo e a tratar mulheres como coisas. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto em público. Legal é xingar, machucar, deixar claro quem manda e quem obedece. O contrário é coisa de mina. Ou, pior, de bicha.
E quando uma mulher não tem a garantia de que não será importunada, ofendida ou violentada, com ações ou palavras, toda a sociedade tem uma parcela de culpa. Pelo que fez. Pelo que deixou de fazer.
Da minha parte, nessas horas, sinto uma enorme vergonha de ser homem.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.