Um alvará não torna uma casa noturna segura em São Paulo
Leonardo Sakamoto
28/01/2013 09h05
Por conta da estúpida e dolorosa tragédia dos 231 mortos em Santa Maria (RS), muito se discute sobre a falta de alvará para funcionamento da boate que pegou fogo.
Não posso dizer como ocorre em Santa Maria, mas em São Paulo, que congrega a maior quantidade de casas noturnas do país, um alvará pode não significar absolutamente nada. Há locais que o possuem e estão dentro das normais. Mas outros totalmente irregulares também contam com o documento. Uma das razões é a velha e conhecida máfia que se estabelece em torno do processo de emissão e fiscalização de licenças de bares, restaurantes e casas noturnas na cidade.
Muitos já se escreveu sobre isso: diretores de órgão públicos que ficaram milionários dando licenças para grandes empreendimentos, shopping centers que funcionam sem poder funcionar, funcionários que reclamam de perseguição (quando pedem propina para continuar o trabalho). O fato é que qualquer prefeito que tentar mudar essa realidade, desburocratizando e digitalizando os processos de obtenção de certidões e licenças e punindo os servidores públicos corruptos, por exemplo, é bem capaz de cair antes da própria máfia.
Sob o impacto do que ocorreu em Santa Maria, o prefeito de São Paulo Fernando Haddad determinou a criação de uma comissão para verificar se a legislação para prevenção de incêndios em locais fechados está adequada à cidade, aprofundar a atuação do poder público e evitar que tragédias semelhantes ocorram. Agora, precisa combinar isso com os russos, como diria Garrincha. Porque lei é letra morta se a fiscalização não operar de acordo com ela.
Conversei com envolvidos com essa rede que pediram para não serem identificados. Para obter uma licença de funcionamento, bares, restaurantes e casas noturnas têm que apresentar à Prefeitura de São Paulo uma série de documentos, como por exemplo, certidão da instalação de gás, laudo de acústica, uma vistoria dos bombeiros…
O problema é que, não raro, você apresenta tudo, mas o status segue "em análise". Até que, um dia, um fiscal aparece e te multa por funcionamento sem licença.
– Ah, sim temos um problema de morosidade dos processos aqui na repartição, mas você só poderia funcionar depois que tivesse a obtido sua licença.
Funcionar sem licença é errado, claro. Mas funcionários do próprio Estado criam dificuldades para o andamento do processo para vender facilidades.
Tudo bem, vamos pelo comportamento correto. Você aluga um imóvel, tira todas as certidões e espera a prefeitura conceder o documento antes de abrir o seu bar. Muitas vezes, a prefeitura simplesmente não se manifesta. Depois de um ano, as certidões vencem. Ou "são vencidas" pelo tempo.
– Poxa, não sei o que está acontecendo. Já gastei milhares de reais em aluguel jogado fora sem abrir a minha casa noturna, sendo que está tudo ok em questões de segurança. Ninguém me dá um prazo! E se demorar mais seis meses, vou ter jogado meu dinheiro fora.
– Vou te ajudar. Liga para esse engenheiro aqui, o Robervias. Ele resolve tudo para você. O cara é bom.
Aí você liga e o sujeito aparece para uma reunião.
– Olha, o alvará de casa noturna nesta região custa R$ 30 mil.
– Como é que é? Mas não deveria ser gratuito?
– Hehehe. Não é bem assim que as coisas funcionam.
– Ah, mas meu estabelecimento está de acordo com a lei. Prefiro continuar tentando.
– Boa sorte, então.
E as certidões continuam a vencer depois de um ano sem que alguém as analise.
Por vezes, o dono do estabelecimento não possui todas as certidões. Alguns querem economizar com a insegurança alheia. É um pára-raios que falta aqui, uma saída de emergência fora do padrão ali, extintores de incêndio em número insuficiente, um isolamento térmico que não existe. Elementos que deveriam impedir o funcionamento de qualquer lugar que reúna multidões. Nesse caso, um pagamento pode resolver.
– Então, estou meio irregular, sabe?
– Vai custar R$ 35 mil para resolver tudo, incluindo o alvará. Pode confiar. Quando sair no Diário Oficial, você me paga.
– E o que garante que, uma vez emitida a licença, eu não dê um calote em você?
– Hahaha. Você não vai.
O número daqueles que se beneficiaram por essa prática, sendo empurrados para isso como alternativa para existir ou que buscaram economizar comprando o direito de funcionar, é tão grande que revelar todas as histórias significaria rever uma quantidade significativa dos estabelecimentos comerciais da cidade. Porque, na prática, poucos são os que tiraram alvará sem passar por uma das situações aqui descritas. Isso acarretaria em fechar alguns e refazer o projeto de outros. Lembrando que, quanto maior o estabelecimento, menor as chances de adequação depois de aberto. Por que? É o poder econômico, estúpido! Duvida? É só pegar os casos que foram trazidos a público pela mídia e ver que fim deu.
Enquanto isso, pessoas que analisam tragédias dizem que é necessário reforçar a fiscalização e criar novas leis. Com as conhecidas denúncias contra a fiscalização de estabelecimentos urbanos que temos no Brasil? Sem combater a corrupção antes? Isso seria enxugar gelo. Há funcionários públicos que não compactuam com isso. Outros fazem vistas grossas para sobreviver na selva. E, claro, parte deles é do esquema. Portanto, melhor seria "refazer" a estrutura, praticamente a partir do zero, criando processos transparentes e rápidos e impedindo a política do "faz-me rir".
São Paulo não é marcada por grandes tragédias em incêndios de casas noturnas, apesar da profusão delas. Mas fica a pergunta: uma cidade como a nossa está preparada para garantir que isso não vá ocorrer de fato? É possível resolver o drama da fiscalização, no sentido de que ela garanta segurança a quem utiliza os estabelecimentos comerciais e os locais públicos da cidade? Ou São Paulo continuará bradando seu moralismo hipócrita de que é preciso manter nossos jovens seguros, criando regras para inglês ver e escondendo a cabeça debaixo da terra quando investimentos tiverem que ser feitos para adequar negócios à lei?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.