E desde quando jornalista pode fazer greve?
Leonardo Sakamoto
12/03/2013 13h25
A redação da revista Caros Amigos entrou em greve para protestar contra o anúncio de demissões e a precarização das condições de trabalho e por melhores salários. Após o anúncio da paralisação, a direção da revista, que está tentando pagar dívidas e acertar contas, decidiu demitir os grevistas.
Não é fácil manter um veículo de comunicação alternativo ou contra-hegemônico no Brasil. A publicidade costuma ir para as grandes empresas em uma proporção maior do que sua audiência, o que inclui o governo – que é um dos principais anunciantes. Ele, que dá tudo para os grandes e deixa pouco para os pequenos, sabe disso e dribla quem reclama com um abraço falso aqui e uma promessa que nunca se cumpre ali. Não se trata de caridade e sim de negócios, garantir a cada um, pelo menos, de acordo com seu tamanho. Isso sem contar que, se você denuncia empresas e governos, empresas e governos não sorrirão para você. É um desafio e tanto!
Mas se é difícil manter um veículo de comunicação alternativo ou contra-hegemônico no Brasil, é mais difícil ainda trabalhar em um deles. Ganha-se pouco, não raro abaixo do piso, trabalha-se muito, não raro de forma precária. E percebemos que, em alguns lugares, o comportamento questionador é válido para fora, mas não para dentro.
Dentre nós, há aqueles que resolveram ir atrás de uma causa e aceitaram as dificuldades de se nadar contra a corrente. Ninguém é idiota, todos que fazem essa opção sabem que não vão ter café quente de máquina de espresso, muito menos uma bela cesta de Natal fornecida pela empresa. Apostaram. Algumas vezes, dá certo, noutras não. E não nos esqueçamos que quem saiu [da grande imprensa para a alternativa – coloquei estes colchetes a pedidos] não é melhor do que quem ficou (apesar de muitas vezes nos vermos imbuídos de uma glória luminosa por trabalharmos em locais alternativos). Mas quem saiu também possui direitos como os que ficaram.
Perdi a conta do número de vezes que escutei colegas de profissão reclamarem que, ao pedirem um aumento, ouviram do chefe que eles não poderiam esquecer que estavam lá por uma causa. O que até pode ser verdade, mas não deixa de ser uma justificativa imoral. Semelhante a que jovens repórteres de esporte, de moda ou outros que ocupam vagas em concorridos veículos de comunicação escutam diariamente: vocês deveriam agradecer de estar aqui.
Não, não deveriam agradecer. Pois o trabalho dele é a base do todo.
Mas e quando não há um patrão que fica com a mais-valia do empregado? Bem, nesse caso, o destino de um é o destino de todos e do trabalho de um depende a sobrevivência de todos. Daí, a melhor forma é tomar decisões financeiras com a maior participação e transparência possível para que os envolvidos entendam o que significa uma demissão ou uma contratação.
Ah, mas como isso é difícil! Conheço pessoas brilhantes que são péssimas administradores e não reconhecem isso. Vocês já viram um jornalista dizer que não sabe, não entende, não consegue ou não pode realizar determinada tarefa?
Muitos veículos estão morrendo. Visito redações de amigos que perdem gente aqui e ali todos os dias. O jornalismo como conhecemos está mudando. O que inclui a mídia convencional e a contra-hegemônica. Como se adaptar a esses novos tempos digitais, com baixa captação por anúncios, alta concorrência e leitores que pagam cada vez menos pelo conteúdo que consomem? É algo que estamos construindo e para o qual não há respostas feitas.
Mudanças acontecem e a nova geração que, hoje, pega uma revista e, com dois dedinhos, tenta ampliar uma foto como uma tela sensível ou que não entende porque a TV da sala não responde aos seus toques terá um relação diferente com o papel que temos hoje. Jornais, de todas as matizes ideológicas, vão morrer no meio dessa transição. Outros migrarão para a internet. Veículos novos vão surgir, pensados para plataformas digitais, multimídias, interativas. Quem não se adaptar e não se planejar para essa virada, vai comer capim pela raiz mais cedo.
A informação já está se tornando mais democrática dessa forma, com um número maior de pessoas produzindo notícias, fazendo-as circular e espalhando um ponto de vista que não encontrava eco em publicações tradicionais. A imposição da volta da obrigatoriedade de um diploma para o exercício do jornalismo, nesse contexto, vai ter pouca importância. É um debate parecido com direitos autorais, cujo sentido foi revolucionado pela internet.
Resgato um debate que já travei aqui. De tempos em tempos, somos surpreendidos com notícias de demissões coletivas em veículos de comunicação convencionais. Motivos são vários: garantir a sobrevivência, aumentar a margem de lucro, gerar capacidade de investimento em outros produtos da empresa. Há ainda os casos em que um jornal fecha as portas e boa parte das pessoas simplesmente vai para a rua por má gestão e erros na condução da publicação.
Reclamamos quando isso ocorre em um campo político diferente do nosso, mas esquecemos o que acontece no quintal de casa. Problemas estão em veículos grandes e pequenos, progressistas ou conservadores. Ninguém está acima do bem e do mal até porque, gostemos ou não, operamos dentro no capitalismo.
Razões podem existir para o encerramento das atividades de um veículo ou a diminuição de sua força de trabalho. Mas o que não entra pela minha cabeça é que isso seja encarado tão bovinamente por muitos de nós.
E que algumas empresas, progressistas ou conservadoras, que defendem a democracia e o diálogo como processo de construção de uma sociedade melhor, ignorem isso quando se trata delas próprias. É um negócio e pertence a alguém. Mas cresceu graças ao suor de trabalhadores, que deveriam ser consultados e chamados a compartilhar decisões.
E não estou fulanizando de um caso específico, de uma revista em greve ou de demissões em grandes veículos.
E a maior parte dos trabalhadores não faz nada. Quando demissões coletivas ou fechamentos de fábricas acontecem em linhas de montagem de veículos, metalúrgicos mobilizam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, informam a população, além de cruzarem os braços até que uma solução seja encontrada para reverter o corte de vagas ou, pelo menos, criar compensações à altura. Nós, não. Vemos colegas irem embora e não falamos nada. Ou melhor, ficamos com medo de sermos os próximos.
Aliás, greves são raras no jornalismo. "Ah, mas nossa atividade é de primeira necessidade e não somos irresponsáveis como cobradores de ônibus que pedem melhores salários e fazem a população sofrer." Legal como os discursos sobre a nossa pretensa importância foram martelados em nossa cabeça desde cedo, né? Como se tivessemos um Bernardinho gritando no nosso ouvido: "Vai, você é o cara! O time depende de você! O país depende de você! O universo depende de você! Prossiga! Prossiga!"
Nós, jornalistas, muitas vezes não nos reconhecemos como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais necessários em determinado lugar.
Alguns colegas vão repetir: japa, mas essas mudanças são boas. Agora, os jornalistas vão poder trabalhar por conta própria e criar seus próprios veículos na internet. Como se um grupo de pessoas que, durante toda a vida, trabalhou em uma empresa possa, de uma hora para outra, tornar-se um empreendedor de sucesso. Tendo família para sustentar, contas a pagar e sem a disposição de tentar do zero e dar com a cara no muro. Financiamento coletivo, patrocínio cruzado, enfim, há quem lide com isso de forma fácil. Mas lembrem-se que a maioria não foi programada para isso. Por isso, temos o chamado "Milagre da Multiplicacão dos Frilas", que eram assalariados e tornaram-se "chefes de si mesmos". Alguns são felizes por não terem férias remuneradas. Outros, não.
Talvez o futuro seja um misto de tudo isso, emprego CLT, frilas, empreendedores individuais ou coletivos, pessoas produzindo conteúdo em redes, ONGs, enfim. Mas, hoje, o que me preocupa são os viventes e suas contas a pagar.
O que estou pedindo? Jornalistas do mundo, uni-vos? Que tamancos sejam jogados nas prensas dos jornais? Nem… isso seria muito brega. Ou melhor, kitsch. O que gostaria de lembrar é que as coisas vão mudar cada vez mais rápido. E temos duas opções: encarar isso sozinhos ou juntos, lutando contra a indiferença.
Mas também não vendo monstros e demônios onde eles não existem, como se nós, trabalhadores, também fossemos vítimas indefesas e não protagonistas de nossa própria história. História que aceitamos em deixar de lado, não raro por preguiça.
Acrescento a isso John Donne, poeta inglês, citado em "Por Quem os Sinos Dobram", de Ernest Hemingway, ao defender que a morte de qualquer homem me diminui, pois sou parte da humanidade: nunca procure saber por quem os sinos dobram. Pois eles dobram por ti.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.