Carandiru: Policiais são réus. Mas bem que poderia ser o povo de São Paulo
Leonardo Sakamoto
08/04/2013 12h12
Os promotores Fernando da Silva e Márcio Friggi – responsáveis pela acusação de 26 policiais militares por conta de 15 dos 111 mortos do Massacre do Carandiru – afirmaram que o mais difícil não será a questão de provas materiais, mas sim desconstruir a ideia (idiota) de que "bandido bom é bandido morto". O julgamento começa nesta segunda (8) e, dividido em etapas, irá envolver 79 policiais acusados de homicídio.
Os promotores demonstram, dessa forma, ter capacidade de analisar e entender o cidadão médio, que compõe o júri. É claro que se trata de um julgamento complexo. Não é possível, por exemplo, provar que todos os envolvidos dispararam suas armas por falta de exames de balística. Além disso, cumpriam ordens – no que pese essa justificativa já ter sido publicamente execrada desde Nuremberg. Diante do horror, temos, sim, opções.
Mas o fato é que boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de "alimentar bandido" em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo. Mesmo que o Pavilhão 9 da Casa de Detenção concentrasse presos novos aguardando julgamento. Pois mesmo que não fossem culpados de seus crimes, alguma culpa eles tinham porque estavam lá.
Lembro-me da história de Cirso Fernandes Guilherme, que foi espancado até a morte e teve a casa incendiada e o bar destruído por um grupo de, pelo menos 20 pessoas, após ser acusado de ter sido o responsável pela morte de uma adolescente de 14 anos em Marília, interior de São Paulo, tempos atrás. Contudo, os exames preliminares mostram que a jovem não sofreu violência, poderia ter morrido por outro motivo. Diante disso, uma mulher que participou do linchamento afirmou à reportagem: "Se a gente fez, ele deve. Alguma coisa ele deve." Ou seja, o morto é culpado porque nós o punimos. Caso contrário, porque o puniríamos? A turba acredita que não precisa saber a razão de matar, pois ele, certamente, soube o motivo de estar morrendo.
No curto prazo, tenho pouca fé no ser humano nesse sentido. O que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV safados e estruturas conservadoras, como a família e a escola, têm pavimentado dificilmente será desconstruído do dia para a noite. Mas gostaria que o júri me surpreendesse.
Ao criticar execuções públicas de pessoas que estão sob a tutela do Estado, não defendo "bandido", mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, abrimos mão de resolver as coisas de forma sumária para impedir que nos devoremos. O Estado não pode usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de se tornar pior do que ele. Na prática, contudo, para contrapor os bandidos optamos pelo terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais, como garantir real qualidade de vida à população para além de força policial dia e noite.
Ninguém está defendendo o crime, muito menos bandidos e traficantes (defendo a descriminalização das drogas como parte do processo de enfraquecimento dos traficantes e pelas liberdades individuais, mas isso é outra história). O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade estamos nos tornando ao não solucionarmos um massacre como o ocorrido no Carandiru em outubro de 1992.
Pena que um dos responsáveis pelo massacre nunca poderá ser punido, uma vez que a alma do coronel Ubiratan Guimarães tenha ido para o brejo cedo demais. Foi assassinado em 2006 e, numa espécie de anedota da vida, ninguém foi condenado pelo crime até hoje. Estava a caminho de ser facilmente reeleito como deputado estadual, ironizando o país ao candidatar-se com o número 14.111.
Ele chegou a ser sentenciado, em 2001, a 632 anos de prisão pela responsabilidade direta em 102 mortes. Cinco anos depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou um recurso e o absolveu, gerando protestos dentro e fora do Brasil. A defesa de Ubiratan afirmou que ele estaria agindo no "estrito cumprimento do dever" quando ordenou a invasão do Pavilhão 9 da Casa de Detenção – a mesma justificativa dos 79 réus de agora. Seus chefes, Pedro Franco de Campos e Luiz Antônio Fleury Filho, então secretário de Segurança Pública e governador do Estado de São Paulo, não são réus no caso.
Mas se fossem, poderiam alegar o mesmo: "estrito cumprimento do dever". Pois, como já disse aqui, o que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 foi um servicinho sujo que parte de nós, paulistas, desejava (e ainda deseja) em seus sonhos mais íntimos: que bandido bom seja bandido morto. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não conseguiu apontar e condenar os culpados. Ela simplesmente não quis. Porque não suportaria um espelho no banco dos réus.
Muitos dos presos do Pavilhão 9 foram julgados e executados pelos policiais, comandados por um coronel e sob a responsabilidade de políticos mas guiados por uma irracionalidade coletiva. Para muita gente, esse tipo de decisão sumária é linda, seja feita pelas mãos da população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros, imagine sem ele.
Do meu ponto de vista, Justiça divina não existe. O universo não conspira a favor ou contra nada. Por isso, desejo tanto que nossa Justiça funcione aqui e agora. Daí a importância de momentos como o julgamento que começa hoje. E que, no mínimo, a sociedade consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o. Para evitar que ele aconteça de novo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.