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O mundo sempre foi colorido. Mas estava reprimido no armário

Leonardo Sakamoto

27/04/2013 08h56

– Cor?
– Hum… Não sei bem ao certo.
– Como assim?
– Ah, quais são as opções que você tem aí?
– Isso não uma casa de sucos! Além do mais, é autodeclaratório. Você tem que dizer qual a cor da sua pele por conta própria.
– Ah, sei lá.
– O que está na certidão de nascimento?
– Ué, mas não foi você quem disse que é autodeclaratório? Eu não tinha idade para declarar nada naquela época, concorda?
– É tão difícil dizer de que cor você é?
– Mas para quê você precisa dessa informação, afinal? Faz diferença a minha cor?
– O questionário pede.
– E o questionário pede por quê?
– Não questiono o questionário. Apenas preencho.
– Ah, sim, claro… Olha, não sou negro. Também não sou branco. Quando era pequeno ficava irritado com aquelas crianças pintando seus desenhos de pessoas com lápis cor de rosa. Jesusmariajosé! Parecia um monte de gente que havia tostado na praia sem protetor! Dava vontade de passar pintando todo mundo de lápis branco-cor-de-protetor-solar para ver se a queimadura diminuía! E – ridículo – ninguém era "rosinha" naquela sala de aula… Um dia a professora disse para eu pintar os meus bonequinhos de amarelo. Pô, mas não sou amarelo! Fiquei bege…
– Pardo?
– Não, fico bege com isso.
– Pula, depois a gente vê. Masculino ou feminino?
– Para que você quer saber isso também?
– O questionário pede.
– Só tem duas opções?
– Só são duas opções!
– Não são, não meu bom homem…
– O resto não é reconhecido como tal.
– Resto? Meu amigo, não é, mas deveria! Ou, melhor, não deveria ter divisão nenhuma. Cada um vive como é. Para quê encaixotar sentimentos?
– Mas você é macho ou você é fêmea?
– Tem que ver o momento. Fala a verdade, isso aqui é só para vocês justificarem a contratação de estatísticos, não?
– É importante saber qual o seu sexo.
– Por que? As cadeiras são anatômicas? Eu ganho um parceiro novo se responder?
– Importante para saber com quem estamos lidando.
– Não sei com quem vocês lidam, mas já sei com quem estou lidando.
– Depois a gente preenche. Religião?
– É tanta coisa junto e misturado, né? Olha, eu vou a missas de sétimo dia e quando tem batizado. Ah, e fui num culto de Páscoa um tempo atrás levar a minha mãe, mas tava muito lotado, daí fiquei fumando do lado de fora. Também vou a um terreiro, todos os anos, perto da data do meu aniversário, tomar um passe, fazer a manutenção, sabe como é. E tenho este patuá aqui na carteira…olha só…Ogum, santo guerreiro! Tenho ido a um templo budista muito legal que abriu na minha rua para fazer uma meditação e ver se controlo a ansiedade. Hum, deixa ver… Por conta de uns problemas nas costas, fiz uma operação espiritual dia desses – funcionou que é uma maravilha. E a última coisa foi bater um papo com dois jovens loirinhos, com sotaque suuuuuper carregado, que se achegaram na minha porta dia desses. Gostei deles. Isso faz de mim o quê? Mórmon?
– Vou colocar "ateu".
– Ei, mas não sou ateu. Não dá para preencher algo genérico, tipo "brasileiro"?
– Pula. Casado, solteiro, separado ou divorciado?
– Agora, danou-se… A resposta é "depende".
– (suspiro) Depende do que?
– Depende do dia. Dependo do humor das pessoas. Olha, no começo até achei que dava para ter uma vida pão-pão, queijo-queijo. Mas depois, desisti.
– O senhor que acabou de sair marcou "casado". Foi simples! Por que você não escolhe um desses também?
– Ele escolheu casado? Kkkkkkkk. Mas conheço a figura desde os tempo da faculdade. Não conta para ninguém, mas ele tem uma amante há anos.
– Mas, perante a lei, ele é casado.
– Meu filho, na hora em que a outra vier atrás do patrimônio para garantir o sustento do filho deles, acabou essa história de "casado".
– Renda familiar mensal?
– Hum, moro sozinho, então sou só eu. Deixa ver…tem que somar aquilo também… é pouquinho, mas entra… isso, não, isso é prejuízo… pagar o contador… ah, varia de dois a 20 salários mínimos por mês.
– Essa faixa não existe
– Helloooo! Eu sou frila, meu bem. Depende do mês.
– Ttodos os dias preencho dezenas desses questionários. E nunca teve problema!
– Se fosse para ser sincero, poucos iriam conseguir preencher esse treco com as opções travadas que vocês dão.
– Na minha época, homem era homem, branco era branco, católico era católico e cada um sabia seu lugar. O mundo mudou muito…
– Olha, meu querido, o mundo sempre foi assim, mas tava dentro do armário de vergonha. Posso dizer que ele é muito mais divertido do que você pensa.
– Humpf.
– E onde é que eu assino?

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto