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Tragédia de Bangladesh poderia ter acontecido no Brasil

Leonardo Sakamoto

07/05/2013 18h13

As autoridades de Bangladesh divulgaram que o número de mortos do desabamento de um prédio que abrigava um complexo têxtil, ocorrido no último dia 24, passou de 700 nesta terça – o número deve aumentar dada a quantidade de desaparecidos. O país do Sul da Ásia conta com baixa remuneração da força de trabalho nesse setor, o que faz com que empresas de todo o mundo dirijam-se para lá a fim de encomendarem suas coleções.

Nos últimos anos, o Brasil foi surpreendido por operações de fiscalização que resultaram em resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravos em oficinas de costura que produziam roupas vendidas por grandes redes. Não raro, a situação encontrada nas oficinas daqui não diferenciava muito do que pode ser visto por lá.

"Em ambos os casos se observam péssimas condições de trabalho, jornadas extenuantes e pagamentos irrisórios, além de, muitas vezes, estarem presentes alguns dos elementos mais primitivos da exploração humana, como a servidão por dívida e o trabalho forçado", afirma Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo. O Estado concentra os casos detectados de superexploração na cadeia têxtil no país.

Em entrevista a este blog, Renato fez um paralelo entre as duas realidades, mostrando que o que aconteceu no país com a maior densidade demográfica do mundo pode, sim, ocorrer por aqui. Segue a entrevista:

Blog – Uma tragédia como essa, envolvendo trabalhadores da costura, poderia acontecer no Brasil?

Renato Bignami – Certamente poderia ocorrer tragédia semelhante no Brasil, tendo em vista a existência de uma série de fatores convergentes entre os sistemas de trabalho da indústria do vestuário dos dois países. As auditorias do Ministério do Trabalho e Emprego vêm constatando, no decorrer dos últimos quatro anos de intensificação das vistorias, vários mecanismos que indicam um intenso processo de precarização nos ambientes de trabalho do setor têxtil paulista, majorando cada vez mais os riscos existentes e expondo a vida de milhares de trabalhadores a um perigo desmesurado.

O sistema de trabalho adotado pela indústria têxtil para fabricar roupas, tanto no Brasil quanto em Bangladesh, aposta no fracionamento produtivo, na subcontratação de serviços e no pagamento por peça para reduzir custos ao máximo e tirar o maior proveito possível da utilização dessa mão-de-obra. Esse sistema de trabalho, ao qual denominamos "sistema do suor", do inglês sweating system, afasta fisicamente os ambientes de trabalho em que a costura é feita, conhecidos como oficinas de costura, de seus principais beneficiários, os donos da marca. Dessa maneira, essas grandes empresas da moda reduzem seus custos de produção, ampliam sua margem de lucro e relegam para as camadas mais frágeis da cadeia produtiva a completa responsabilidade em assumir os custos de manter um ambiente seguro e saudável para os trabalhadores.

Tragédias na indústria do vestuário constituem, infelizmente, boa parte do histórico desse setor da economia. Incêndios como o ocorrido em 1911 na fábrica de corpetes norte-americana Triangle, localizada no coração de Nova Iorque, em que morreram 146 trabalhadores, são comuns. Mais recentemente, em 2006, uma oficina de costura localizada em Buenos Aires queimou completamente e matou seis integrantes de uma mesma família de costureiros bolivianos. Destino semelhante tiveram duas crianças, filhas de uma família boliviana que vivia e trabalhava no mesmo local – uma oficina de costura no bairro do Brás, em São Paulo, incendiada no ano de 2010. A mesma sina tiveram os 314 trabalhadores de uma fábrica têxtil do Paquistão, ou os 124 trabalhadores de um complexo fabril do mesmo Bangladesh, ambos os desastres ocorridos em 2012. Somados, já se vão alguns milhares de trabalhadores mortos em virtude de péssimas condições de trabalho na indústria do vestuário.

Em São Paulo, a fiscalização do trabalho já se deparou com complexos fabris semelhantes em dimensão e precariedade àqueles existentes no Bangladesh, levando os auditores a interditar as instalações, a resgatar do trabalho análogo ao de escravo dezenas de trabalhadores, e a responsabilizar os beneficiários finais desse tipo de trabalho – conhecidas marcas da indústria têxtil. É essencial a mudança da postura empresarial, no sentido de assumir o seu quinhão de responsabilidade em garantir condições adequadas de trabalho a todos os locais em que ocorra trabalho sob seu comando, quer seja de forma direta ou indireta.

Então os casos de exploração de trabalhadores encontrado na produção de roupas de Bangladesh é semelhante àquela exploração do trabalho  flagrada pelo Ministério do Trabalho e Emprego na produção de roupas em São Paulo?

A superexploração do trabalho que se encontra na produção de roupas de Bangladesh e aquela constatada em São Paulo são basicamente fruto da mesma lógica e encontram um paralelo sem fim. Em ambos os casos se observam péssimas condições de trabalho, jornadas extenuantes e pagamentos irrisórios, além de, muitas vezes, estarem presentes alguns dos elementos mais primitivos da exploração humana, como a servidão por dívida e o trabalho forçado.

Ao lado dessas características, situações de assédio moral e sexual, vexações e abusos de toda ordem também são observados, tanto em Bangladesh quanto aqui. Essas situações ocorrem, na maioria das vezes, nos locais de trabalho mais segregados e obscuros, longe, portanto, das confortáveis instalações que são encontradas nas proprietárias das marcas, nas quais decisões empresariais geradoras de impacto direto em toda a cadeia produtiva são tomadas a cada instante.

Etiquetas de marcas internacionais foram encontradas nos escombros, mas a maior parte das empresas diz que não era responsável pela produção ocorrida no prédio que desabou. Afinal, em que medida as grandes marcas são responsáveis pelo que acontece nas oficinas de costura distantes de seus centros de distribuição?

Grandes marcas são inteira e solidariamente responsáveis pelas condições de trabalho de todos os trabalhadores que contribuem de alguma maneira para que a imagem dessas empresas alcance uma valorização constante, quer sejam seus empregados diretos ou trabalhadores em ambientes de trabalho externos, como as oficinas de costura. O lucro advindo da exploração da marca está diretamente relacionado com o valor agregado pelo trabalho desses milhares de costureiros.

Esses trabalhadores produzem roupas atendendo às ordens que chegam a todo o momento, por vias muitas vezes indiretas e disfarçadas, das empresas beneficiárias e donas de marcas famosas no mercado. A distância física existente entre os centros de distribuição dessas empresas e as precárias oficinas de costura é compensada por novas tecnologias e meios modernos de comunicação proporcionados pela popularização da internet, do aparelho celular e outros inventos semelhantes.

Assim, as ordens que, antes, chegavam de maneira direta, podem agora ser disseminadas de forma diluída e disfarçada, a fim de proporcionar a intensa externalização produtiva à qual assistimos. A reafirmação da responsabilidade jurídica desses grandes beneficiários finais do trabalho de costura é a única maneira de garantir o investimento necessário nas camadas mais frágeis da cadeia produtiva e evitar novas tragédias.

Após a repercussão negativa do caso em todo o mundo, a Disney, por exemplo, informou que deixará de comprar de Bangladesh. Isso soa como uma saída relativamente fácil para a empresa, uma vez que foi também através de suas grandes encomendas, com seus prazos curtos e a pressão por preços baixos que aquele ambiente foi criado. Quais seriam as principais medidas que poderiam ser tomadas para melhorar as condições de trabalho nesse setor?

As empresas precisam, em primeiro lugar, abandonar o discurso da negação, por meio do qual engendram chicanas jurídicas e econômicas de toda ordem a fim de se verem livres de sua responsabilidade perante esses trabalhadores. A partir do reconhecimento holístico da responsabilidade jurídica que permeia completamente a cadeia produtiva, essas grandes corporações devem investir o suficiente a fim de garantir que os preceitos do trabalho decente, como recomendados pela Organização Internacional do Trabalho, possam ser efetivamente implementados em todos os locais de trabalho de sua cadeia de valor.

Apenas pomper o fornecimento e deixar de fabricar a partir de determinado local ou oficina, como punição pelo não cumprimento das normas de proteção ao trabalho,  gera mais precariedade e concentração do lucro aferido por essas empresas. Investimentos em formação profissional, melhores salários, segurança e saúde no trabalho, são essenciais para a melhoria das condições e do padrão de vida dessas pessoas.

Com a crescente demanda mundial por vestuário bonito, bom, barato e que acompanhe as mudanças rápidas da moda, podemos considerar que uma classe de trabalhadores e trabalhadoras ficará sempre à margem de seus direitos?

Trabalhadores e trabalhadoras são também consumidores e consumidoras. Não é possível que o sistema de economia de mercado mundial, da maneira como está atualmente alicerçado, permita a desproteção e a pauperização de milhões de pessoas em benefício de poucos. A inclusão social da era contemporânea se dá por meio dos direitos fundamentais no trabalho e apenas com a garantia de seu gozo e fruto poderemos reafirmar os avanços de nossa sociedade. Trabalhadores e trabalhadoras à margem de seus direitos representam um risco enorme não apenas para suas próprias vidas, mas para toda a humanidade e a paz duradoura, tão arduamente perseguidos no curso recente de nossa história.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto