Em breve, o preço da passagem será o menor dos problemas do poder público
Leonardo Sakamoto
19/06/2013 03h58
"Sakamoto, seu comunista filho da puta! Eu vou te matar!"
Ouvi isso de dois rapazes fortes e mascarados que estavam entre os que depredaram a entrada da Prefeitura de São Paulo, na noite desta terça (19), durante o ato contra o aumento nas passagens do transporte público em São Paulo. Comunista? – hihi. Por sorte – ou azar, dependendo do ponto de vista – eles voltaram a se entreter com uma grade de segurança, feito gato com novelo de lã, junto com outros da sua espécie. O que foi bom porque não pareciam do tipo que brincam em serviço.
Logo antes, eles haviam entrado em confronto com um grupo de manifestantes que usou os próprios corpos em um cordão humano de isolamento, dando os braços, para proteger o prédio. Gritando "sem violência!", permaneceram lá enquanto enquanto viam pedras serem arremessadas sobre suas cabeças contra as vidraças. Ouviam do grupo agressor – uma mistura de boladões bem-vestidos e uma molecada franzina, claramente de origem mais humilde – que estes eram "moralistas" e "coxinhas".
Quando alguém me reconhece na rua (provavelmente pela cabeça inconfundivelmente grande) e vem conversar, normalmente discute algum texto ou ideia, concordando ou discordando em paz. Mas, nesta noite, fui surpreendido algumas vezes por um pessoal que – não duvido – grita "anauê!" enquanto toma banho. São diferentes do pessoal extremamente politizado e consciente que vê a depredação de patrimônio como ação política, mas que não usam violência contra pessoas (só para deixar claro que não concordo com esses métodos, antes que alguém me xingue).
Após a pancadaria por parte da Polícia Militar, na última quinta (13), ter pegado mal para o poder público e as pesquisas de opinião (inclusive o DataDatena em tempo real) mostrarem que a maior parte dos paulistanos era favorável aos protestos, muita gente mudou o discurso com relação ao movimento pela redução do preço das passagens do transporte público em São Paulo. Vendo que ele ganhava força nas redes sociais, também por conta da violência que manifestantes e jornalistas sofreram, trocaram o que – até então – era "vândalo" por "ativista". Setores da mídia e da sociedade civil que não necessariamente concordam com a demanda original dos atos ajudaram a incluir mais pautas às reivindicações, o que aglutinou outros grupos de descontentes.
Para falar a verdade, quando vi algumas instituições conservadoras e reacionárias apoiando os protestos, fiquei com um arrepio na coluna. Isso não tira um milímetro de legitimidade das manifestações, mas preocupa a carona que alguns querem pegar. Páginas de extrema direita na internet, contrárias à pauta da manifestação, conclamando o povo para o ato são de doer. Seria apenas cômico se a coisa não fosse séria.
O Movimento Passe Livre reforçou: este é um ato contra o aumento das passagens. O que, em qualquer sociedade minimamente decente, significa um transporte público com mais qualidade, ou seja, o respeito ao direto de ir e vir e à dignidade humana. "Ah, mas o movimento não consegue controlar a massa para garantir isso." E nem é esse o trabalho deles. São as dores e delícias de uma ação horizontalizada. É claro que as manifestações chegaram a esse porte por reunir um leque muito amplo de pessoas. Inclusive gente que não concorda com o objetivo da manifestação e está lá com sua pauta própria. O direito à livre expressão faz parte da democracia.
O objetivo principal dos atos não é para pedir o impeachment de Haddad, Alckmin ou Dilma; não é pedir recursos para educação, saúde e cultura – por mais que sejam pautas relacionadas ao direito à mobilidade urbana e importantíssimas; não é a favor ou contra o ovolacteovegetarianismo; não é pela volta da ditadura (sim, tem gente dodói da cabeça defendendo isso) ou a favor da redução de impostos; não é uma marcha contra a corrupção, a favor da contratação de reforços para o Palmeiras ou pela volta dos Teletubbies (adoro). Enfim, por mais que ela envolva descontentes de todos os cantos e com muitas reclamações, não é um grande "Cansei" contra o estado das coisas. Ela possui um guarda-chuva central, que mobiliza a maior parte das pessoas. Basta estar presente em um ato do começo ao fim para constatar isso. A maioria dos que gritam contra corrupção, pela saúde, pela educação, contra o pastor Feliciano, por mais teletubbies também entoam contra os 20 centavos.
Há uma pauta principal, objetiva e clara, sem margem para grandes viagens filosóficas: a revogação do aumento da tarifa. É ela que reúne, é ela que justifica, é ela que conclama. Alguns políticos e outros setores econômicos e sociais podem até tergiversar, mas o povo sabe disso. O Datafolha indica, aliás, que 67% da população sabe que o motivo dos protestos é o aumento no preço da tarifa. E 77% apoia as manifestações.
Leia também:
Protestar não restringe o direito de ir e vir. Aumentar a tarifa de ônibus, sim
O poder público não consegue entender as manifestações de São Paulo
Protestos: Por que esses vândalos não sofrem em silêncio?
Ao se articular pelas redes sociais após as manifestações dos dias 11 e 13, exigindo o direito de protestar, em muito por conta da violência da Polícia Militar, os jovens abriram uma avenida. E muita gente que defende a liberdade de expressão trouxe seu carro para rodar nela ao lado da pauta do movimento. Estranho seria se não fizessem isso, dada a pluralidade da sociedade e a magnitude do evento.
O Movimento Passe Livre e colegas jornalistas que têm coberto as manifestações já identificaram a ação de agitadores infiltrados que têm o objetivo de tocar o terror na manifestação. Para deslegitimá-la, para assustar participantes, para justificar ações da polícia, por um rosário de razões. É possível que o ataque à entrada da Prefeitura não tenha começado com os manifestantes que pediam a redução no preço da tarifa. O mesmo se aplica ao fogo que consumiu um carro de reportagem de TV. Da mesma forma, é difícil de acreditar que foram manifestantes que começaram os saques nas lojas do Centro (que, como já ficou comprovado, teve a participação de pessoas que não participavam dos atos) ou atingiram o Teatro Municipal. O saque e caos também têm um significa político forte e claro, mas não creio que este era o caso. Essa minoria queria outra coisa.
Há, é claro, manifestantes que descarregam sua frustração e indignação na forma de ataques a equipamentos públicos e patrimônio privado. Muita gente vinda da periferia que foi sistematicamente excluída da categoria de cidadã irrompe em fúria, bastando apenas uma faísca. Mais uma vez, não estou defendendo esses métodos, apenas explicando que entendo o que se passa na cabeça de alguém que não sente a cidade como sua e, portanto, a protege, porque a cidade nunca o tratou como um dos seus. Tem gente que sabe muito bem disso e, em algumas ocasiões, cria as condições dessa faísca.
A força policial tem sido célere em agir contra manifestantes que caminham de forma pacífica. Contudo, demora para evitar saques ou destruição gratuita realizada por quem não está lá para reivindicar, mas sim promover o caos atendendo à sua pauta própria. Paga ou não. Por que? É uma boa pergunta a fazer aos comandantes das operações.
Há uma grande quantidade de pessoas que nunca tiveram contato com discussões sobre a sua cidade, muitos menos sobre direitos fundamentais, que está caindo de paraquedas nos atos. Quem sejam cada vez mais bem-vindos. Concordo com quem diz que este é um excelente momento para formação política desse pessoal, a fim de que entendam o que está em jogo e transformem insatisfação, descontentamento e incômodo em ação com reflexão, espírito crítico e participação ativa e duradoura nos desígnios da pólis e do país.
E também para evitar outros tipos de violências. Como as de gênero ou de orientação sexual, que podem parecer coisa pequena em meio à multidão, mas que são simbólicas e, portanto, fundamentais.
Na manifestação desta terça, abordei educadamente um rapaz, próximo ao Parque Dom Pedro, que carregava um cartaz chamando Dilma de "vaca". Pedi desculpas pela intromissão, mas expliquei que o protesto dele seria muito mais legítimo se ele usasse um termo para criticá-la que não fosse tão machista. Ele entendeu, ficou sem graça e disse que tinha escolhido só porque rimava com o restante da ideia. Contudo, um senhor mais velho que o acompanhava afirmou que ela é mesmo uma "vaca". Perguntei a ele se gostaria que sua mãe fosse chamada de "vaca", no que ele estranhamente respondeu que sabia que era professor de história e havia estudado a vida de Dilma e podia atestar que ela é uma "vaca" (?…!) Torci para uma das organizadoras da Marcha das Vadias passar naquele momento por ali para um processo rápido de desintoxicação do senhor em questão, mas como não tive o desejo atendido, tentei convencê-lo, em vão.
Pouco depois, um rapaz gritava a plenos pulmões, com o apoio de um coro de moças, "Alckmin é gay!" Também fui conversar com eles (#sakamala). Perguntei por que não usavam outro termo para expressar o descontentamento contra o governador. Pois homossexualidade não deveria ser considerado xingamento. Apesar de uma resistência inicial, ao menos, parte do grupo, entendeu a mensagem.
Ok, gente, não estou querendo provar que sou uma variação do "chato de palestra", nesse caso o "chato de passeata". Mas apenas reforçar algo que todos já perceberam: boa parte desse pessoal está saindo para a vida pública agora e seria importante enfatizar alguns pontos. Outra coisa, por exemplo: atos como esse podem ser suprapartidários, mas nunca apolíticos.
Vi muitas cenas de jovens com caras-pintadas exigindo que bandeiras de partidos fossem abaixadas, o que é uma besteira sem tamanho. Há espaço para todas as denominações partidárias, religiosas, futebolísticas, desde que elas saibam que a manifestação não pertence a elas e não tente cooptá-la. Mas elas – como em qualquer outro momento na sociedade – têm o direito de participar do debate público, porque reúnem pessoas que pensam de uma mesma forma. A livre associação é um direito humano.
Para exigir algo novo, não significa que é preciso considerar que tudo o que já existe é ruim (não acredito que estou escrevendo esse beabá, mas vá lá). Isso é muita arrogância e descolamento com a realidade. Muitos menos que todos os políticos são iguais – não, não são.
Como já escrevi, o paradigma do sistema político representativo está em grave crise por não ter conseguido dar respostas satisfatórias à sociedade. Aos mais jovens, sobretudo. Bem pelo contrário, apesar de ser uma importante arena de discussão, ele não foi capaz de alterar o status quo. Apenas lançou migalhas através de pequenas concessões, mantendo a estrutura da mesma maneira e a população sob controle.
A vanguarda dos progressistas foi ocupada por grupos que discutem as liberdades individuais e a qualidade de vida nas grandes cidades – da mobilidade urbana, passando pelas demandas de direitos sexuais e reprodutivos ao poder de dispor do próprio corpo. Os movimentos estão ainda no momento de tatear e descobrir como serão incorporados esses novos atores que não vêm às ruas para, necessariamente, procurar, respostas para as suas indagações, mas a fim de encontrar pessoas que, através das redes sociais, estavam perguntando a mesma coisa que elas.
Enfim, as manifestações contra as tarifas estão crescendo porque são legítimas. E aglutinando gente. Que também protesta pelo direito de protestar. E, com isso, vai aglutinando pautas paralelas que atendem a demandas legítimas ou a interesses bizarros. Inclusive de gente que não quer debater e sim causar, sendo paga ou não para isso. Inclusive de gente que está lá porque ficou cansada de não ver perspectiva para si nos debates da ágora e está insatisfeita, pegando carona nas reivindicações do Passe Livre – que são bem claras. Quanto mais os políticos demorarem para dar uma resposta a essas reivindicações que originaram essas manifestações, mais estarão alimentando algo que ninguém sabe ainda onde pode parar.
Ou seja, o preço da passagem será o menor dos seus problemas.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.