Comissão do Senado aprova confisco de propriedades flagradas com escravos
Leonardo Sakamoto
27/06/2013 11h26
A "PEC do Trabalho Escravo", proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse crime e sua destinação à reforma agrária e ao uso social urbano, foi aprovada por unanimidade na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal na manhã desta quinta (27). A aprovação ocorre em meio às manifestações de rua que se espalharam pelo país e pressionaram o Congresso Nacional a avançar em pautas de interesse social que estavam paradas ou em trâmite lento. Parlamentares da bancada ruralista devem tentar alterar o conceito de trabalho escravo para evitar punições.
A votação acompanhou o parecer favorável do relator Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), favorável à PEC 57A/1999. Agora a proposta deve ir a plenário. Se aprovada em dois turnos, passa a vigorar em todo o país. Se receber alterações, volta para a Câmara dos Deputados. A expectativa do governo federal é de que será colocada em votação em breve. "Ao permitir o confisco do imóvel em que houver trabalho escravo, o país dará um sinal inequívoco de que está empenhado em inibir a prática desse tipo de crime que fere, não só as leis trabalhistas, mas, antes de tudo, os direitos humanos", diz o parecer.
Devido a um acordo entre deputados federais e senadores, uma comissão mista irá esboçar uma proposta de regulamentação apontando como se dará o perdimento de terras, imóveis e benfeitorias. Uma vez aprovada a PEC, o Congresso Nacional votaria essa lei complementar.
Lideranças ruralistas exigiram que a comissão também rediscuta o conceito de trabalho escravo por conta de uma suposta "confusão". Movimentos, organizações sociais e parlamentares envolvidos com o tema e que acompanharam a votação vêem com preocupação essa demanda. Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, afirma que a "confusão" sobre o conceito é uma "falácia" da bancada ruralista para inutilizar não só a PEC, mudando assim a definição do crime, mas o próprio combate à escravidão. Para o senador Pedro Taques (PDT-MT), o conceito já foi alvo de debates na reforma do Código Penal e é sólido. Outro parlamentar que acompanha o tema há tempos no Congresso e foi ouvido pelo blog afirmou que "a impressão é que ruralistas querem que seja punido apenas quem for encontrado com pelourinho, chicote e grilhões, além do recibo de compra do escravo".
A ministra Maria do Rosário já havia afirmado que o governo federal é contrário a qualquer proposta ou projeto de lei que envolva a possibilidade de rever o conceito de trabalho escravo – como o projeto de autoria de Moreira Mendes (PSD-RO), que retira as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva da caracterização de escravidão contemporânea. Os ruralistas e contrários à proposta defendem a aprovação de uma lei que redefina o conceito de trabalho escravo, diminuindo as situações possíveis de caracterizá-lo.
Sobre isso, os favoráveis à PEC e o governo afirmam que não há necessidade disso e que o conceito de trabalho escravo já é claro no artigo 149 do Código Penal, defendendo a aprovação de legislação infraconstitucional apenas para regulamentar a expropriação, garantindo que ela ocorra após decisão judicial transitada em julgado.
De acordo com a lei vigente, são elementos que determinam trabalho escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social – um exemplo são as mais de duas dezenas de pessoas que morreram de tanto cortar cana no interior de São Paulo nos últimos anos), cerceamento de liberdade/trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, retenção de documentos, ameaças físicas e psicológicas, espancamentos exemplares e até assassinatos) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
O artigo 149 do Código Penal, que traz o conceito de trabalho escravo, é de 1940, reformado em 2003 para deixar sua caracterização mais clara. Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a definação desse artigo. Recentemente, processos por trabalho escravo contra um senador e um deputado federal foram abertos no Supremo Tribunal Federal com base no 149. Nas falas dos ministros do Supremo, fica clara a compreensão do Judiciário a respeito do que sejam "condições degradantes de trabalho", uma das características da escravidão contemporânea mais refutadas pelos ruralistas.
No campo, a maior incidência de trabalho escravo contemporâneo está na criação de bovinos, produção de carvão vegetal para siderurgia, produção de pinus, cana-de-açúcar, erva-mate, café, frutas, algodão, grãos, cebola, batata, na extração de recursos minerais e na extração de madeira nativa e látex. Nas cidades, a incidência é maior em oficinas de costura, no comércio, hotéis, bordéis e em serviços domésticos. No campo e na cidade, pipocam casos na construção civil.
Histórico – Aprovada na Câmara dos Deputados em maio do ano passado sob a numeração 438/2001, a proposta voltou para a sua casa de origem por ter sofrido modificações. "Do ponto de vista da constitucionalidade da matéria, não há nada a objetar", afirma o relatório de Aloysio Nunes Ferreira. "Não há, igualmente, restrições quanto à juridicidade, regimentalidade e técnica legislativa", afirmou o relator, que propos a aprovação sem alterações.
O parecer também ressalta a importância da aprovação do instrumento, mesmo em face dos mecanismos já existentes de combate ao trabalho análogo ao de escravo pelo viés econômico: "a despeito do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava e o engajamento de parte do setor privado no combate ao crime em torno de um pacto empresarial (por meio do compromisso de cortar relações econômicas com escravagistas), são poucos os casos de condenação criminal da Justiça por submeter alguém à escravidão". E ressalta que "toda propriedade rural ou urbana deve cumprir sua função social e jamais poderá ser utilizada como instrumento de opressão ou submissão de qualquer pessoa".
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 22 de maio do ano passado, em segundo turno, a proposta de emenda constitucional 438/2001. Com isso, a matéria, que havia sido aprovada em primeiro turno em agosto de 2004, foi remetida de volta ao Senado por conta da inclusão, pela Câmara, da previsão de expropriação de imóveis urbanos. Foram 360 votos a favor, 29 contrários e 25 abstenções, totalizando 414 votos. Ao final, os deputados cantaram o Hino Nacional no plenário. Em 2004, foram 326 votos a favor, 10 contrários e 8 abstenções.
Na época, após uma reunião das lideranças partidárias com o presidente da Câmara Marco Maia, houve um acordo para que a proposta fosse colocada em votação. As bancadas orientaram seus deputados pelo "sim". Parte dos deputados contrários à PEC perceberam que a posição favorável à aprovação teria quórum e recearam defender uma negativa que poderia ser questionada posteriormente pela sociedade – uma vez que o voto para mudança constitucional é aberto. Ao mesmo tempo, quase 100 deputados estavam ausentes. Isso ajuda a explicar o baixo número de votos contrários e leva a uma falsa impressão de que a votação foi fácil, quando – na verdade – a sua viabilização levou anos. E até o resultado aparecer no painel eletrônico, ninguém tinha certeza de nada. Ao final, nem todos os parlamentares obedeceram a orientação partidária, mas o número foi suficiente para passar a matéria.
Confisco – A PEC 57A/1999 ou 438/2001 (a primeira é a numeração no Senado, casa de origem, e a segunda é a que ela recebeu na Câmara) prevê um acréscimo ao artigo 243 da Constituição que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. O projeto está tramitando no Congresso Nacional desde 1995, quando a primeira versão do texto foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA), mas não conseguiu avançar. Então, uma proposta semelhante, criada no Senado Federal por Ademir Andrade (PSB-PA), foi aprovada em 2003 e remetida para a Câmara, onde o projeto de 1995 foi apensado.
Devido à comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego durante uma fiscalização rural de rotina em 28 de janeiro de 2004, no que ficou conhecido como a "Chacina de Unaí", no Noroeste de Minas Gerais, a proposta andou na Câmara. Os produtores rurais Antério e Norberto Mânica, acusados de serem os mandantes do crime, ainda não foram julgados.
Desde sua aprovação em primeiro turno, em 2004, ela entrou e saiu de pauta várias vezes. Dezenas de cruzes foram plantadas no gramado do Congresso e mais de mil pessoas abraçaram o prédio em março de 2008, para protestar contra a lentidão na aprovação da proposta. Dois anos depois, um abaixo-assinado com mais de 280 mil assinaturas foi entregue ao então presidente da Câmara e hoje vice-presidente da República, Michel Temer. Em janeiro do ano passado, Dilma havia colocado a PEC como prioridade legislativa para o governo federal neste ano.
No dia 08 de maio de 2012, houve um ato no auditorório Nereu Ramos, da Câmara, reunindo centenas de pessoas, entre trabalhadores rurais, movimentos sociais, centrais sindicais, artistas e intelectuais, pedindo a aprovação da PEC. Um outro abaixo-assinado com cerca de 60 mil peticionários foi entregue a Marco Maia. Por pressão dos ruralistas, ela acabou adiada para o dia seguinte. A proposta chegou a entrar na fila de votação no dia 9, mas foi retirada. Os ruralistas, então, adotaram como estratégia aproveitar para negociar mudanças profundas no conceito de trabalho escravo, usando a justificativa da aprovação da PEC 438 para tentar descaracterizar o que é a escravidão contemporânea.
Atualizada às 14h15 para acréscimo de informações.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.