Frio em SP: o problema não é falta de agasalhos, mas especulação imobiliária
Leonardo Sakamoto
24/07/2013 08h42
As pessoas deveriam falar mais baixo em restaurantes. Por isso, não pude deixar de prestar atenção em um diálogo entre duas elegantes senhoras. Uma reclamava que um grupo de "mendigos" havia ocupado o prédio da família do marido, que estava fechado há anos, esperando "boas condições de venda". Estava desolada porque, sabendo como funciona a Justiça, iria levar uma eternidade para aquele povo ser retirado de lá. Bem, particularmente, acho que, sabendo como funciona a Justiça para nós, da elite, isso ia sair mais rápido do que ela imagina.
Não sei onde fica essa ocupação, mas não é coincidência que tenha nascido no momento em que deixaram a porta do freezer aberta na cidade – que registrou a madrugada mais fria desta década nesta quarta (24), com oficiais 5,2 graus Celsius em Santana.
Toda vez que o frio chega com força à capital paulista, lembro a quantidade de imóveis que têm como inquilinos ratos e baratas, visando à especulação imobiliária, enquanto tem gente virando picolé do lado de fora. Ou pessoas que dormem sob temperaturas de conservar frango em barracos, cortiços e habitações precárias.
Antes de continuar, contudo, o outro lado. Coletei comentários de leitores que se opuseram a qualquer mudança nessa área em outros posts que publiquei sobre o tema:
– Minha família tem um imóvel fechado há anos sim, tá esperando o preço aumentar e não é obrigada a alugar só porque tem bêbado que não quer trabalhar.
– Casa facil e eu aqui ralando que nem um louco para ter a minha…
– Aí Sakamoto, um dia desses eles vão entrar com metralhadora na sua casa. Vão jogar álcool em vc e dizer que colocarão fogo! Depois te roubam tudo, levam seu carro e a policia encontra na favela que pegou fogo! Depois de um mes te assaltam na Riberto Marinho e levam teu religio ali mesmo, naquela favela. Sabe o que? Tem que limpar mesmo……
– Eles roubam de noite e passam a tarde ali no boteco da favela tomando cerveja. Acordem!!!!!!
– Caro articulista! Ou você é ingênuo ou muito burro! Você já pensou que podem ser os próprios moradores que colocam fogo na favela? Você já se perguntou por que, em uma desgraça destas, ninguém, felizmente, sai ferido? Vá se informar antes de ficar fazendo firula com a desgraça de alguns…
– Eu me mato para pagar um IPTU de 1.200,00 reais anualmente. Além de luz, telefone, TV a cabo, funcionários etc e etc… Qual desses "desvalidos" paga o que eu pago? E eles tem "tudo mais" que eu tenho. Casa de graça, Luz (Miau), TV (Miau), Metrô perto de casa, shopping etc etc e ainda quando aparecem "flagelados" ganham casa do governo e bolsa isso, bolsa aquilo, seguro desemprego, seguro "cadeia" etc… Quem é mais prejudicado no Brasil populista? EU ou eles??????????????
E a frase que ao lado de "Japonês, vá para a %$5@(#!" é a queridinha dos leitores deste blog:
– Tá com dó? Leva para casa!
Um clássico. É proferida ad nauseam quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o burgo paulistano – locomotiva da nação, vitrine do país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas patéticos caindo de velhos. É só falar da necessidade de políticas específicas para evitar que o direito à propriedade oprima os outros direitos fundamentais, que reacionários vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder o blogueiro.
Tô sim com dó. Mas não dos dependentes químicos. Muito menos da população de rua. Tô com dó de parte dos gestores da cidade e de seus habitantes que compactuam com saídas fáceis para problemas complexos. Até levaria essa patota #classemediasofre toda para casa. Mas temo não ter a quantidade de uísque e outras drogas lícitas a que alguns desses cavalheiros e damas estão acostumados.
Mas isso não vem só de quem tem. Boa parte dos trabalhadores que entraram na linha do consumo, há poucos anos, adota com facilidade o discurso conservador. Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências. Em posts sobre déficits qualitativos e quantitativos de moradia, por exemplo, quem tem pouco adota por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes proprietários e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de "mão-beijada" por parte do Estado.
Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.
Bem, como já disse aqui antes, se você é do tipo que acha bonito aquela parábola – deveras brega, diga-se de passagem – do sujeito que, diariamente, pega estrelas-do-mar e as joga na água, achando que está fazendo sua parte para salvar o mundo, meus parabéns. Provavelmente, também acha que apenas doar agasalhos resolve o problema de quem está passando frio do lado de fora e que a vida vai mudar com a somatória de pequenas ações de caridade coloridas e cintilantes. Pede mais educação, mais saúde, mais segurança e, ao mesmo tempo, quer menos impostos e menos Estado, não?
Se sim, vá fazer outra coisa, ler um gibi, mas desencane deste post, porque estou tratando de discutir políticas públicas. Não é uma responsabilidade individual minha ou sua tomar cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa. Mas a construção participativa de saídas é um dever coletivo que tem no Estado o ator principal.
O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados por portas de tijolos pudessem ser desapropriados e destinados gratuitamente para quem precisa. Mas, ao invés disso, o governo federal investe em programas que facilitam o financiamento de novos empreendimentos ("Minha Casa, Minha Dívida"), quando poderiam também estar entregando às famílias de baixíssima renda apartamentos já existentes.
Enquanto isso, Estado e município não têm coragem de enfrentar os grandes latifundiários urbanos. Há prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a intocabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito à vida isso fica difícil. É um caso ou outro, mas nada que se assemelhe a uma reforma urbana.
A área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimentos por moradia por uma razão bem simples: porque já tem tudo, transporte, cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que possuem menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais (com exceção dos condomínios-bolha espalhados no entorno, como as Alphabolhas, com suas dinâmicas de segregacionismo próprias). Contudo, a recuperação da área central de São Paulo, por exemplo, tem sido feita pela expulsão do povão, a implantação de uma arquitetura da exclusão (com formas de afastar essa gente encardida) e erguimento de monumentos à música, às artes, à educação e a facilitação de imóveis para a classe média. Para compensar, um albergue aqui e acolá a fim de que os rejeitados sejam recolhidos e depositados em algum lugar antes que termine a sessão na Sala São Paulo e as pessoas de bem sejam obrigadas a deglutir cenas incômodas.
Como aqui já disse, sabe o artigo sexto da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então, é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar "moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social". Se o artigo sétimo fosse verdade, talvez pudesse ajudar o sexto a ser também.
Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas, viver em São Paulo é lindo – se você pagar bem por isso.
Isso contribui com a faxina social que ocorre, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes privados. Talvez para não melindrar o cidadãos de bem, que não gostam de mendigos mal-cobertos por doações de agasalhos ferindo o senso estético por aí, têm horror a qualquer crítica à intocabilidade da propriedade privada e querem tomar um café quentinho em seu restaurante sem jornalistas a ouvir seus desabafos.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.