É que a televisão me deixou burro, muito burro, demais
Leonardo Sakamoto
08/09/2013 16h21
Resolvi aperfeiçoar um roteiro, postado por aqui anteriormente, com coisas que andei vendo na TV nos últimos dias. Acho que agora está digno.
Cena de fazenda ocupada por indígenas. Zoom na latinha de cerveja. Câmera abre até mostrar indígenas sentados em roda, rindo de algo. Locução do repórter cobrindo as imagens:
– Eles estão festejando a invasão de trocentos mil hectares de terra. Terra que, até então, era produtiva.
Close em um deles, no que fala errado. Desfocar as crianças indígenas com cara de pobres ao fundo. Foco na falta de dentes do entrevistado. Se estiverem sujos, melhor.
– Estamos esperando o governo nos atender, né?
Observação: Editar e jogar fora a parte do "Os pais dos pais dos meus pais costumavam viver nessa terra. Hoje, minha família vive de favor em outro terreno com outras famílias, né? Muita gente, não cabe, não dá para plantar, né?"
Passagem para o laboratório da empresa dona da fazenda. Close na lágrima do cientista3, que perdeu parte da pesquisa com a ocupação na plantação dos eucaliptos:
– Isso era a minha vida.
Subir som, resgatando versão de Milton Nascimento de "Coração de Estudante", cantada no funeral de Tancredo Neves.
Cortar a entrevista com a liderança que fala bonito – "Na verdade, a tribo indígena pede há 30 anos que os títulos sobre a área, uma reserva já demarcada em 1937, sejam anulados. Não estamos pedindo nova demarcação, apenas que se cumpra o que já foi decidido no passado".
Observação: Se entrar essa declaração, a matéria sobe para o bloco de política e o diretor disse que é para ficar logo depois dos homicídios e assassinatos da madrugada, em cotidiano.
Cortar as imagens de crianças indígenas passando fome, refestelando-se com jaca velha. O chefe disse que nosso telespectador não quer ver jaca velha enquanto está jantando.
Passagem para a prefeitura do município. Prefeito:
– O medo é grande nas cidades por causa da ação dos nativos.
Repórter:
– E o prefeito denuncia.
Prefeito:
– As ONGs internacionais e o MST é que arregimentaram todo esse povo nas favelas de Salvador para levar nossas terras. Eles não são nem índios. Eles parecem índios para você?"
Entra um "povo fala". Colocar uma idosa senhora:
– Tenho medo de vandalismo.
Um comerciante:
– Eles são contra o progresso, não querem ver geração de empregos.
Um policial:
– Normalmente, há muitas reclamações de alcoolismo com eles.
E um estudante . Encontrar o que tiver mais cara de hippie e falar para o próprio umbigo:
– Mas os indígenas têm direito a essas territórios por serem delas autóctones e nelas realizarem seus rituais e a efetivação simbólica de sua relação com o universo. Ou seja, há um princípio cosmológico presente nessa interação ser vivo e local que não pode ser negada pelo capitalismo.
Corta para o repórter na entrada da fazenda.
– A paralisação das atividades de produção de madeira na última semana fizeram o Brasil perder R$ 872 milhões em exportações.
Mostrar gráfico com dados da associação dos proprietários de fazendas ocupadas por populações tradicionais e trabalhadores rurais.
Repórter completa:
– E, entre os invasores, há procurados pela polícia, como o cacique Escambau, foragido há anos.
Volta para o estúdio, onde o apresentador faz beicinho de indignação, balançando a cabeça, antes de abrir um sorriso e chamar a matéria da preparação para a Copa do Mundo. Segue para repórter em frente ao Itaquerão:
– Estamos aqui com o coordenador do núcleo de coreografia da abertura da Copa que vai dizer como o Brasil irá receber atletas de países dos cinco continentes.
Corta para o coreógrafo:
– A pedido do governo, os indígenas serão os personagens principais. O tema será "Apogeu e Glória de Tupã-Deus-Sol, Solidariedade e Luz" e mostrará todo o esplendor dos primeiros moradores desta terra. Usaremos muitas plumas. Sintéticas, é claro! Afinal de contas, temos que ser exemplos em sustentabilidade.
Ao fundo, moças e rapazes brancos, muito brancos, mostram trechos da coreografia. Dançando, dançando, dançando…
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.