Filhote de beagle ou criança escrava: quem foi mais longe na sua timeline?
Leonardo Sakamoto
19/10/2013 11h36
Uma amiga fez um comentário no Facebook, reclamando que a libertação de cachorrinhos gera uma comoção pública muito maior que a de pessoas em situação análoga à de escravo. Ela se importa com os animais, claro, mas entende que houve um descompasso na divulgação do caso dos beagles resgatados em São Roque (SP) que diz muito sobre a gente.
Vamos por partes, até porque este é um daqueles posts em que as pessoas não lêem, tiram conclusões a partir do que não leram e saem xingando o blogueiro em cima do que ele não escreveu. Na internet, aliás, esse é comportamento padrão.
Particularmente, sempre me irritei com testes em animais para o desenvolvimento de cosméticos, produtos de beleza em geral. Ou encontra-se outra forma de verificar a eficácia e os efeitos colaterais ou que se use menos. Afinal, há marcas que conseguem desenvolver produtos sem esses testes.
Com relação ao desenvolvimento de medicamentos, precisamos substituir o que for possível por softwares de simulação, reduzir o uso de cobaias, refinar os experimentos e educar pesquisadores e estudantes da área para tornar a participação de animais cada vez menos necessária. E os testes não podem ser feitos sem a devida justificava junto a um comitê de ética voltado para essa finalidade, sendo acompanhados para garantir a integridade do animal e o mínimo de desconforto possível. Falei com alguns pesquisadores que disseram que a meta é zerar os testes mas, no momento atual da medicina, isso é impossível. Importante, contudo, é construir um caminho para que testes em animais sejam desnecessários e proibidos.
Mas o tema do post não é esse. Não estou discutindo se ações em defesa dos animais são válidas ou não, pois elas são. Também não estou sugerindo que o sentimento sincero de dedicação a uma causa vale mais que a outra (não sei porque estou fazendo esse "porém", tem gente que vai ignorar que ele foi escrito mesmo…) E, sim, o comportamento da sociedade diante de tudo isso.
Choca ver imagens de animais bonitinhos que eram cobaias em experimentos, até porque a sociedade não sabe e não quer saber quais processos ocorrem para manter o seu nível de conforto e qualidade de vida? Sim, as pessoas ficam chocadas. Animais com pelos raspados, sem olhos, dopados, mortos e congelados foram sendo reproduzidos pela rede de forma viral. Muitos eram filhotes.
Ações como a retirada de animais em São Roque são coisa rara de se ver, é claro. Portanto, há o fator novidade, enquanto desgraça envolvendo seres humanos, você tem todo o dia. Já cansei de participar de operações de resgate de escravos em que foram encontrados pessoas sem partes do corpo, perdidas no serviço com a motosserra, gravemente doentes, desnutridas e desorientadas. Reportagens de TV já mostraram até corpos de pessoas assassinadas tentando fugir que foram exumados pela polícia. Não atingiram a mesma comoção.
Filhotes são indefesos e adultos podem cuidar de si mesmos, alguém pode justificar. Mas mesmo nos resgates de crianças escravas, eu não vejo o mesmo impacto da divulgação ou o mesmo nível de indignação. A história da criança que perdeu um olho trabalhando na colheita de cacau na Amazônia. Ou das meninas de 12 anos que eram exploradas sexualmente em bordeis sujos em beira de estrada. Ou ainda os adolescentes que morreram soterrados ao trabalhar em mineração no interior do Nordeste. Todas o casos foram trazidos a público e nenhum ganhou a mesma empatia. Pelo contrário: pela internet, após a veiculação das reportagens na TV, jornais e sites, lia-se coisas do tipo "ah, mas é melhor que elas estivessem trabalhando do que roubando".
Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que libertação de 150 escravos que sangravam na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de dez costureiros que produziam a roupa que eu visto todo o dia. Mas todos sabem o que é uma criança. É duro, portanto, imaginar que ela não desperte sentimentos nos que absorvem a informação. Talvez por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema.
Mas a possibilidade de reação existe, tanto que minha timeline ferveu de fotos de beagle.
Talvez a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado não é uma coisa fofa como um bichinho com olhar do Gato de Botas, do Shrek. Pelo contrário, para muitos é tão repugnante a ponto de transferirem a culpa pelo ocorrido para a própria vítima que "se deixou ficar naquela situação deplorável".
Somos programados para que coisas fofas despertem sentimentos de proteção, de cuidado, o que ajuda muito para manter a integridade de seres humanos recém-nascidos. Bebês e animais fofos despertam a vontade de estar perto deles. Aliás, a única estratégia de defesa diante do mundo que eles têm é serem fofos.
Repito, este texto não é sobre experiências com beagles, exploração de escravos ou as crianças sem infância. Mas como reagimos a tudo isso.
Meu desejo não é que as pessoas deixem de se indignar diante do que considerem ser qualquer injustiça. Pelo contrário, que consigamos fugir de nossas programações mais básicas e acordemos de nossa acomodação e percebamos que há injustiças que passam diante de nossos olhos e não as vemos como um problema. A indignação por uma causa não exclui a outra e jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem. Manifestar-se pode, ao contrário, significar a mudança da situação ou a manutenção de tudo como está.
Sei que não é fácil criar as condições para que algo desperte compaixão e, de lá, ação. Mas se não puder ser pela emoção, que nos dediquemos ao outro pela lógica e a razão.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.