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Quanto tempo dura a indignação pelo assassinato de um desconhecido?

Leonardo Sakamoto

28/10/2013 18h04

Um conhecido de infância, lá do Campo Limpo, me mandou uma mensagem perguntando, de forma irônica, quanto tempo ia durar a indignação pelo rapaz assassinado "por acidente" pela polícia militar na periferia de São Paulo. Ele tem uma tese: a indignação dura o tempo em que o caso for útil para a comprovação de um argumento defendido por grupos de intelectuais, movimentos e organizações sociais.

Quando uma morte não cabe na defesa das bandeiras desses grupos ou quando esses grupos, por serem pequenos e periféricos, não conseguem pautá-la na mídia ou em redes sociais, a história desaparece com a vítima. Há histórias que colam e outras que não.

Ou seja, histórias revoltantes como a de Amarildo, que teria sido torturado e morto pelas mãos da polícia carioca, não caem no esquecimento porque servem como bandeira. Bandeira contra a violência policial, a repressão violenta de manifestações, a desmilitarização da polícia militar e uma série de outras causas justas.

Creio que meu supracitado colega não estava questionando a sinceridade com a qual muitas pessoas se dedicam a essas causas e os efeitos positivos para a sociedade de seu árduo trabalho. Mas, como ele ressaltou, é triste ficar dependendo desse tipo de notoriedade para garantir que haja uma chance da Justiça ser feita. "Porque, na maioria das vezes, a gente volta para a casa a pé, enquanto vocês dão tchauzinho da janela do avião."

Neste ano, ocorreram mortes, torturas, espancamentos de sem-terra, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, no campo, isso sem contar limpeza social de pessoas em situação de rua e da matança de jovens pobres e negros da periferia das cidades.

E você não ficou sabendo da maioria deles.

A mídia tradicional ou mesmo a alternativa não trouxeram todos os casos. E as redes sociais não repercutiram a maioria deles.

Claro que as observações do meu colega transbordam de cinismo. Mas não tenho como deixar de resgatar que, logo no início de seu livro "O jornalismo e o assassino", Janet Malcolm sintetiza:

"Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. Tal como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em ser tema de um escrito não ficcional aprende — quando o artigo ou livro aparece — a sua própria dura lição. Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do 'direito do público a saber'; os menos talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida."

As palavras são úteis não apenas para o jornalista, mas também para o ativista, o intelectual, o político, para todos nós. Todos nós que nos preocupamos com algo apenas quando nos atinge.

Se o problema é do filho ou filha do outro, do desconhecido distante, então que se dane. A verdade é que defendemos liberdades coletivas quando estas nos dizem respeito individualmente. Será que vamos, um dia, conseguir defender o outro simplesmente porque ele é (ou deveria ser) semelhante a mim em direito e dignidade? Será que veremos o outro como um igual?

Poderia ser diferente? Na sociedade em que vivemos, talvez não, uma vez que todos temos nossas preocupações e demandas que limitam a preocupação com a dignidade do semelhante desconhecido.

Tenho certeza de que não só a história do rapaz será esquecida como tantas outras que permanecem vivas apenas pelas pessoas que os amaram. Punir os responsáveis e garantir mudanças pontuais e estruturais para que o caso não volte a se repetir seria o único epitáfio que se espera.

Isso não acontecerá de cima para baixo. Mas quando a parte de baixo colocar a parte de cima, que ganha com sua desgraça, seja ela quem for, abaixo.

Torço, cada vez mais, para que esse dia chegue logo, destronando nosso lugar de fala.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto