E, de repente, aquele momento em que nada parece fazer sentido
Leonardo Sakamoto
06/11/2013 15h08
Uma das experiências humanas que me deixam mais fascinado é aquele momento em que nos sentimos como se tivéssemos descido do ônibus da vida, vendo o mundo passar do lado fora. Normalmente isso acontece quando recebemos uma notícia que rompe nossa conexão com o restante dos passageiros e nos atira para fora da estrada. É quando o tecido de lógica e sentido, no qual enrolamos e aquecemos confortavelmente nossa ignorância, se rasga. E todo o resto não importa mais.
Se esse ônibus vai pelo caminho certo, se chegará no horário ou irá se atrasar para além do normal, se por conta disso precisarei avisar alguém ou ficar preocupado com o chefe que certamente chiará, pois é chefe. Se ficarei fraco ao não comer, se não tomar banho me trará algum incômodo, se dar o calote nas contas me deixará na bancarrota, se abandonar minhas obrigações fará com que eu seja julgado, se falarão mal ou bem de mim. Se lembrarão de mim.
Daí, enchem sua caixa postal querendo uma resposta que você não está interessado em dar. Ou um rosário de mensagens apitam no seu WhatsApp, como se o mundo fosse acabar, mas você deixa o telefone se esgoelar. As pessoas se sucedem à sua frente. O calendário também. Por que as pessoas correm tanto? Para onde elas exatamente pensam que vão? Você olha tudo, mas não vê.
Enfim, dane-se.
É um término de relacionamento, a confirmação de que alguém próximo está muito doente, um aviso de despejo, uma carta de demissão, uma solene injustiça, uma ingrata constatação, a notícia de uma morte. Por alguns minutos, horas ou dias, dependendo de quão fundo se vai, é como se o resto fosse um grande filme narrado em sânscrito popular com legendas em aramaico.
Para além de ficar catatônico e inerte, a cabeça vai longe, pensando em todos os fatos que levaram àquele momento e, é claro, nos desdobramentos reais ou fantasiosos dele. E nos apegamos a esse passado e a esse futuro porque nossa loucura parece ser a única coisa realmente sã em tudo aquilo.
Alguns, quando chegam a esse momento, autodiagnosticam depressão e, com medo do que a tristeza e a solidão podem mostrar, se entopem ou são entupidos de medicamentos ou buscam fugir. Fisicamente. Digitalmente. Como se o processo de tentar compreender e aceitar uma mudança, que é um caminho que não se faz de ônibus, mas a pé, às vezes sob o sol inclemente, às vezes no frio e na chuva, fosse algo ruim. As feridas não cicatrizam só porque as cobrimos com um paninho. Quando se nega esses momentos, o crescimento que poderia decorrer da superação desse processo fica interditado.
Entender e não enterrar nos descaminhos da memória é fundamental, seja para superar dores, seja porque isso simplesmente faz parte da vida. Não raro, nós temos as respostas para nós mesmos, bastando procurar. Em silêncio. Sozinhos.
Ficar sozinho, coisa que está cada vez mais difícil nesse mundo que passa veloz pelo ponto e não para. Diferente de solidão, que por conta da mesma velocidade, está cada vez mais comum.
Em tempo: Agradeço aos que enviaram mensagens perguntando se está tudo bem. Está sim, obrigado. O texto não foi motivado por um caso específico. Mas poderia ser. O fato é que devemos falar sobre certos assuntos em tempos de paz ou de guerra.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.