Quando escuto "você sabe com quem está falando?", tenho vontade de morder
Leonardo Sakamoto
08/11/2013 18h33
"Você sabe com quem está falando?"
Quando alguém diz isso, certamente um anjinho comete suicídio no céu (só para reciclar a piada dos pandas de ontem).
Ouvi isso hoje – o contexto é longo e chato, então não vem ao caso. Mas fiquei com a impressão de que a pessoa, feito um macaco velho, jogou sua caca em mim. Sei que o assunto não é novo neste espaço, mas isso me tira do sério.
Não tanto pela arrogância e prepotência da frase, mas porque ela carrega séculos de nossa formação, lembrando que uns falam, outros obedecem. E que, na visão de parte de nossa elite política e econômica, a igualdade de direitos é um discurso fofo que se dobra às necessidades individuais.
Não somos uma sociedade de castas. Porque cada um sabe qual o seu quadrado.
"Quem você pensa que é?" é menos agressiva e útil frente a algum desmando de um representante do Estado, por exemplo. Mas não faz tanto sucesso por aqui como a outra. Pois não é o questionamento do uso exagerado do poder por um policial ou um fiscal que está em jogo nesse momento de discussão, mas sim a afronta de tentar tratar um "dotô" como se fosse um operário qualquer.
A ideia vai se adaptando conforme o ambiente e pode, agregando valores, assumir outras formas:
"Teu salário paga a comida do meu cachorro" (muito querida por jogadores de futebol)
"Eu conheço gente importante, sabia?" (uma das campeãs entre os guardas de trânsito)
"Você vai perder seu emprego, meu irmão" (tente ser um oficial de Justiça cumprindo seu dever para ver o que você vai ouvir)
"Isso que dá vir a um lugar que tem essa gentinha" (quando crianças criadas no leite de pêra não têm seus desejos atendidos em grandes shows de música)
Cidades como o Rio de Janeiro, que têm praia, estão mais acostumadas à convivência interclasses, mas nem sempre de forma pacífica, a bem da verdade. No Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a vida inteira, praticamente consegue. Tenho amigos que conhecem a Europa e os Estados Unidos, mas só irão à Itaquera pela primeira vez na Copa de 2014.
Ou que nunca estudaram com um homem negro ou uma mulher negra. Acha que racismo não existe.
Essa ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da alma de cada um. O que é extremamente complicado porque o Brasil é composto majoritariamente por essa "gentinha pobre que nunca sabe com quem está falando e acha que pode mandar".
Não se espera que os mais ricos passem a defender que os mais pobres tenham os mesmos direitos que eles (é o sistema, estúpido!), mas, pelo menos, que concordem com um mínimo para viabilizar a convivência pacífica.
Com o crescimento econômico, aumenta o número de pessoas com acesso a bens e serviços. Isso gera aquela "infestação" de gente parda e feia nos aeroportos (quem já ouviu declarações de dondocas e pseudo-empresários a respeito disso ficou de cabelo em pé), que estão tomando o "nosso" lugar.
Como diria o genial Marcelo Adnet em uma de suas piadas escrachando nossa elite: "Agora pobre voa! Vá de ônibus! O Brasil sempre foi assim. Ora, e as tradições dessa República?"
A coisa boa é que esse pessoal vai ficar cada vez mais irritado. Até que chegue o dia em que será comum responder "Quem você pensa que é" para quem rosnou "Você sabe com quem está falando?".
A coisa ruim é que mesmo com muito trabalho de educação para a cidadania, concomitante a mudanças estruturais para garantir que a República realmente sirva ao interesse comum, ainda assim levará um rosário de gerações até que frases forjadas pelo preconceito e a soberba tornem-se peça de museu.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.