"Tá com dó? Leva pra casa!" é daquelas frases que causam vergonha alheia
Leonardo Sakamoto
22/12/2013 09h21
Desculpem-me, mas vou trazer um tema de volta. Quando uma manada de leitores envia a mesma frase, creio que é hora de falar sobre ela. Não, não é "Se você não é patriota, mude-se do Brasil", "Japonês, você é um gay enrustido" ou ainda "Não tenho culpa de ter nascido rico". E sim o famigerado "Tá com dó? Leva pra casa!".
A frase faz sucesso aqui no blog. Principalmente entre os leitores que usam seu Tico-e-Teco apenas no Natal para poder quebrar nozes e depois os mantém em animação suspensa sob temperatura de vinho branco. É proferida ad nauseam quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o Centro da pujante São Paulo – locomotiva da nação, vitrine do país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas patéticos caindo de velhos. É só falar da necessidade de políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal mas, ao mesmo tempo, respeitem seu direito de ir e vir e ocupar o espaço público, que reacionários vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder o blogueiro. Rrrrrrrrrr, au!
Afinal de contas, quem você pensa que é, jornalistazinho babaca metido a intelectual, que fundamenta seus orgasmos na estética da miséria, refestelando-se com situações-limite que colocam em risco nossa civilização, expondo as famílias de bem à escória do mundo. Tá com dó? Leva pra casa!
Fico pensando o que isso quer dizer exatamente. Como levar um dependente químico ou uma pessoa em situação de rua para casa vai ajudar na solução do problema?
Bem, se você é do tipo que acha bonito aquela parábola – deveras brega, diga-se de passagem – do sujeito que, diariamente, pega estrelas-do-mar e as joga na água, achando que basta cada um fazer sua parte para o "mundo ser salvo", meus parabéns. Mas vá fazer outra coisa, desencane de ler este texto. Você não compreende muito bem o que é política pública, ação em escala e responsabilidade coletiva.
Para os demais, gostaria de lembrar que criticar uma política higienista serve para que o poder público respeite os direitos individuais e dê soluções reais aos problemas e não apenas espalhe-os para que sumam da vista dos mais endinheirados. Não é uma ação individual que vai resolver, mas uma mudança de paradigma com medidas em grande escala: como tratamos os doentes e a quem pertence o Centro de São Paulo.
Muitos esqueceram, mas a ação desastrosa do poder público na região que ficou carinhosamente conhecida como Cracolândia teve como efeito espalhar usuários e vendedores de drogas para outros pontos da cidade e transferir dependentes que viviam em cortiços para barracos em calçadas da região. Diziam que estavam reprimindo o tráfico e o consumo, mas nem o soldado mais raso acreditava nisso. Sabiam que estavam é limpando os arredores da Sala São Paulo, da Pinacoteca, do Museu da Língua Portuguesa e do empreendimento imobiliário conhecido como Nova Luz desse estorvo indesejável. A cada mata-leão em usuário de crack, o metro quadrado sobe de preço.
Detalhe: a operação da PM se chamava "Sufoco". Não, não é criativa, muito menos certeira. Talvez fosse melhor algo como "Operação Guardanapo de Boteco". Não resolve o problema, apenas o espalha.
Detesto o verbo "revitalizar". Ele tem sido usado para justificar grandes atrocidades, como se a vitalidade de um lugar fosse medida pela ausência de gente pobre. Revitalizar têm sido construir museus e praças e mandar o lixo humano para longe. Não apenas expulsando dependentes, mas também a população pobre que habita a região e que não cabe nos planos do governo. O que? Arruaceiros jogando bola e empinando pipa assustando a gente de bem? Sai pra lá! E leve seu cerol com você!
Melhor tirar da vista do que aceitar que, se há pessoas que querem ocupar o espaço público por algum motivo, elas têm direito a isso. A cidade também é delas, por mais que doa ao senso estético ou moral de alguém. Ou crie pânico para quem acha que isso é uma afronta à segurança pública e aos bons costumes.
Enxotar é mais fácil que implantar políticas de moradia eficazes – como uma reforma urbana que pegue as centenas de imóveis fechados para especulação e os destine a quem não tem nada. Ou repensar a política pública para usuários de drogas, hoje baseada em um tripé de punição, preconceito e exclusão e, portanto, ineficaz. Ao mesmo tempo, muitos vêem os dependentes químicos como estorvo ao invés de entender que lá há um problema de saúde pública.
As ações implantadas pelas três esferas de governo não produziram nenhuma mudança significativa ainda que não fosse a estética. E o povo gosta do discurso idiota da polícia na rua, mesmo que essa presença não sirva. Prender traficantezinho mixuruca e mandar os usuários acenderem o cachimbo na Barra Funda ou no Brás é solução para a dependência química do crack em São Paulo?
Tô sim com dó. Mas não dos dependentes químicos. Muito menos da população de rua. Tô com dó dos gestores da cidade e de parte dos seus habitantes que compactuam com saídas fáceis para problemas complexos.
Até levaria essa patota toda para casa. Mas temo não ter a quantidade de uísque e outras drogas lícitas vendidas na farmácia a que alguns desses cavalheiros e damas estão acostumados.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.