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Que objeto representa o Brasil de hoje? Simples: o biscoito recheado

Leonardo Sakamoto

23/12/2013 08h37

E aproveitando que o Natal – data em que celebramos o nascimento do Papai Noel e do crediário em 12 vezes sem juros – está logo aí, uma frase usada à exaustão e que merece ser comentada é a boa e velha "Se não gosta, é só não comprar". Como se nada nos guiasse para adquirir um produto. Como se não houvesse tantos elementos que incidem na formação do desejo e na tomada de decisão que eu me pergunto se é possível afirmar, no final das contas, que temos livre-arbítrio.

Nossas ações são, em muito, determinadas pelo ambiente em que vivemos, as situações das quais compartilhamos, nossos amigos, parentes e colegas de trabalho e do tipo de propaganda que absorvemos diariamente.

Por exemplo, as que dizem que esponjas amarelas e com gosto artificial de queijo são saborosas ou que tornam dois litros de caramelo preto com essências variadas um dos símbolos de nossa era e civilização.

Você acha que tem opção. Mas o que se convencionou chamar de liberdade para consumir é um processo com uma gama muito estreita de opções. A informação de que existe um mundo lá fora que vá além de esponjas de queijo e ácido carbônico preto é pouco difundida pelos veículos de comunicação. E, quando difundida, ela é inigualavelmente mais chata que os anúncios.

Isso sem falar que furar a "liberdade assistida" tem um custo alto, que a maioria dos brasileiros não pode pagar. Tanto o consumo saudável quanto o consumo consciente são atividades censitárias em uma cidade como São Paulo.

Ou seja, é – em grande parte das vezes – para quem tem dinheiro para fazer uma escolha e pagar mais pelo melhor (se for tomate sem agrotóxico e biscoito livre de transgênicos, então…) ou tempo para preparar algo não-industrializado. E, portanto, mais dinheiro disponível.

A Organização Mundial da Saúde, em Genebra, decidiu, neste ano, por adotar um plano para conter o aumento da obesidade no mundo. O que inclui a mudança de hábitos considerados prejudiciais e vinculados ao aparecimento de doenças cardiovasculares, câncer e diabetes: fumar, beber e comer alimentos ricos em substâncias que causa danos ao organismo. OK, reconheço, só aquilo que é considerado bom.

O plano da OMS inclui a necessidade de reduzir os níveis de sal, açúcar e gordura em alimentos industrializados, diminuir as porções servidas e, atenção, solicitar um controle maior por parte dos governos quanto à publicidade voltada a crianças.

Não estou discutindo critérios estéticos, mas sim uma questão de saúde pública. Sei do que estou falando, tenho pressão alta e níveis de colesterol e triglicérides mais altos do que meu médico gostaria.

Nossa qualidade de vida aumentou ao termos menos tempo para fazer nossas refeições e, consequentemente, optarmos por nos entupir de produtos menos saudáveis, mas mais rápidos?

A entrada de classes mais pobres no consumo através de uma avalanche de carboidratos industrializados alardeados como status social na TV deve ser comemorada?

O biscoito recheado é o novo Santo Graal do Brasil contemporâneo?

Afinal de contas, a nossa sociedade de consumo e sua máquina de empacotar soluções ineficazes para frustrações empurra de um lado para o tamanho XXXG. Simultaneamente, do outro lado, parte da mídia e da indústria da moda diz que só pode ser feliz quem cabe em um manequim 32. No máximo.

E dá-lhe modelo desfilando com cara de quem comeu meia folha de alface e o bando de menininhas e menininhos suspirando para ter um corpo igual a esses palitinhos, que também não deveriam ser exemplos de saúde para nada.

Esquizofrênica a situação? Imagina. Tudo faz sentido. Para o bolso de alguns.

Sei que a evolução programou meu cérebro por milhares de anos para gostar de gordura e me preparar para tempos de vacas magras. Mas, hoje, essa programação natural é reforçada por outra.

Apenas com muita dificuldade somos capazes de aprovar regras para anúncios publicitários de produtos gordurosos ou com muito açúcar ou sal. E olha que não estamos falando de proibição, mas sim de informação – coisa que deveria ser fornecida abertamente. Afinal de contas, o consumo em excesso de certos alimentos pode trazer riscos à saúde.

Regras assim não agradam as indústrias de refrigerantes, sucos concentrados, salgadinhos, biscoitos e de bebidas com muita cafeína. Lembremos que a exigência de rotulagem de produtos que contenham transgênicos e a obrigação de estampar que o tabagismo mata nos maços de cigarro também foram alvo de furiosas reclamações por parte de algumas empresas e associações.

Quando alguma limitação à publicidade de produtos é baixada, há sempre um grupo que brada ser esse ato um atentado à liberdade de expressão. Mas, ao usar essa justificativa, o que acaba defendendo é o direito de ficar em silêncio para não se expor diante da sociedade. O problema é que essa omissão de informações acaba sendo um atentado contra a liberdade de escolha. Não é possível decidir se não há informação suficiente. Vivemos um capitalismo de mentira no qual não querem nos dar todas as informações para tomarmos a melhor decisão.

Colocar isso em prática é difícil. Afinal de contas, uma campanha na TV para dizer "modere" a comidas (sic) como um salgadinho é muito mais chata do que uma peça publicitária usando o Ben 10 e a preguiça simpática do The Croods, piscando na tela tão rápido que, se não convencer a consumir, pode causar um ataque epilético à la Pikachu.

Por fim, um desabafo: concordo com qualquer decisão que vá na contramão do consumismo maluco em que a gente se enfiou como civilização e que nos levará para o buraco. Através de objetos, enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco. Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência programada para dar, daqui a pouco, mais dinheiro a alguém.

Mas tenho presenciado muitas pessoas criticando a camada da população que o governo resolveu politicamente chamar de "nova classe média" mas que nada mais é que os pobres de sempre, agora com o poder de consumo. "Será que eles não vêm que isso está comprometendo o futuro das próximas gerações?"

Sim, está. Mas o ponto é que não é culpa (detesto essa palavra, desculpem) deles.

Os que têm dinheiro consumiram por gerações. Bem, vocês conhecem a história, esse debate tem pontos de semelhança com aquele que contrapõe, de um lado, países industrializados e, de outro, aqueles em processo de industrialização sobre o direito de poluir.

O capitalismo nos Estados Unidos, Europa e Japão ajudou a colocar o termostato da grelha na posição "gratinar os idiotas lentamente" e a China, Índia, Brasil, entre outros, vão terminar o serviço, ajustando para "assar". Daí as discussões pesadas sobre mecanismos de compensação. Que, apropriados pelo mercado, como o comércio de carbono, dão dinheiro para algumas pessoas, sem – em minha opinião – frear radicalmente o processo em direção à danação.

O paralelo exato com o comportamento de países, contudo, não é possível. Para atravessar esse processo de industrialização, os Estados mais atrasados passam por cima de suas populações desfavorecidas – a relação pornográfica do Brasil com cimento e vergalhão é um exemplo.

A discussão não é essa, porém, mas como mudanças de comportamento dependem muito da experiência material de cada um – o que não é novidade para quem entendeu o sábio de barba. Marx, neste caso, não Jesus.

É mais fácil dizer "não" para o consumismo se você brotou em um ambiente com sua presença ou nele viveu. É mais simples optar por uma vida sem nada, se você teve tudo à disposição ou é herdeiro de algo. Se experimentou, constatou, informou-se e, conscientemente, se afastou.

Estou julgando quem tem? Não. Só estou dizendo que nós, que recebemos muito mais que a maioria, estamos em uma situação privilegiada para adotar certos comportamentos. É fácil ser crítico tendo estado lá ou tendo uma rede de segurança. Difícil é não cair na incredulidade de São Tomé.

Preciso colocar o dedo na tomada para levar choque? Também não. Esse processo pode ser resolvido através do debate, da discussão, da informação. Mostrar que, infelizmente, o mundo não aguenta mesmo e outro padrão de desenvolvimento e de comportamento se faz necessário – bem como buscar a realização pessoal através de "ser" e não de "ter". Isso inclui oferecer para essa camada social – que recebeu ordens para consumir loucamente pela felicidade, mas também pela pátria – uma inclusão por um bom transporte público, ao invés da cidadania pela compra de motos e carros de segunda mão.

A definição do que seja "necessário" pode ser bastante subjetiva, ainda mais que tornamos o excesso parte do dia-a-dia. É como não saber mais o que é real e o que é fantasia ou, pior, não ter ideia de como escolher entre o caminho irreal da felicidade e a via dura da abstinência.

É uma discussão lenta. E talvez nem tenhamos mais tempo para realiza-la e aplicá-la a tempo. Mas, de forma ditatorial, de cima para baixo, é que não vai funcionar mesmo.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto