O que vai ser da nossa vida sem o pastor Marco Feliciano?
Leonardo Sakamoto
10/01/2014 18h45
A existência de Satanás entra na mesma categoria da Mulher de Branco e do Homem do Saco, na minha opinião, é claro. Mas respeito quem acredita nos três.
"Ah, mas o maior feito do Tinhoso, seu japonês profano, foi fazer com que duvidássemos de sua existência." Hum, um bom paradoxo. Mais ou menos um Gato de Schrodinger da religião.
É claro que seria muita ignorância fazer de conta que a personificação do mal não tenha sido construída por praticamente todas as sociedades humanas. Lembre-se dó para o Diplik e da Fanta Uva. Diga se não tenho razão.
Mas vincular isso a uma comissão que defende direitos fundamentais de minorias sistematicamente excluídas diante de uma plateia de pessoas que, com o perdão da palavra, são ignorantes no assunto e muito suscetíveis ao que dizem seus guias espirituais sobre o tema, é uma jogada política das mais rasteiras e das mais brilhantes. Se foi ideia do tal do diabo, ele merece parabéns. Fundamentalistas religiosos afirmaram que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias estava com a presença do capeta antes deles chegarem.
Marco Feliciano, que deixa a presidência dessa comissão, após uma passagem – digamos – memorável, conseguiu dar voz a um público que vive nas sombras de sua própria desinformação. O problema é que isso é um desserviço sem tamanho ao país. Sangue e lágrimas foram derramados para avançarmos, um tiquinho por vez, na efetivação da dignidade e da igualdade de direitos. E, com a ajuda de uma série de presepadas, ao longo do ano passado, com objetivo político-eleitoral, demos saltos para trás ao perder um tempo precioso.
As falas e aparições públicas de Feliciano foram bem calculadas para capitalizar o máximo de retorno junto a esse seu público. Ou seja, não é que ele acreditasse exatamente em tudo o que disse mas pouco importava. Desconfio que sua aventura de tentar o Senado dará em água e tenho certeza de que ele não alcança outros cargos majoritários relevantes, mas vai sim arrastar mais deputados com ele nas próximas eleições.
Defendo que todas as formas de pensamento estejam representadas na Câmara dos Deputados, mesmo aquelas com as quais não concorde – exceto, claro, as racistas, xenófobas, preconceituosas e discriminatórias.
Porque estamos falando de discursos, não de latidos e outras onomatopeias.
Afinal de contas, garantir que babacas usem a tribuna para cometer atentados contra os direitos humanos é o ó do borogodó.
"Aê, japonês! E o meu direito de fazer os outros sofrerem destilando a minha ignorância? Seu comunista totalitário! Seu safado! Vem cá que te dou uma sova! Se fosse no tempo da Gloriosa, você já estaria morto…"
O bom é que esse pessoal é autoexplicativo quando fala. Já vêm com tecla SAP.
Uma consequência boa de tudo isso é que a situação surreal de 2013 alertou muita gente para o que acontece no parlamento federal nessa área.
Elevar o esperto pastor Marco Feliciano à categoria de inimigo comum, gerando uma popular identidade reativa, foi relativamente fácil. Difícil é fazer oposição a pessoas e programas que sistematicamente e historicamente tentam retirar direitos, mas que são menos caricatos e mais espertos que o pastor supracitado.
Parte da bancada ruralista se encaixa nessa categoria, por exemplo. Rifou o futuro das próximas gerações ao transformar o Código Florestal em papel maché, persegue os direitos das populações indígenas (que sofrem com genocídios, como o que ocorre no Mato Grosso do Sul) e caminha a passos largos para acender a churrasqueira com a (pouca) proteção de que dispõem os trabalhadores rurais.
A luta pela garantia das liberdades individuais é uma agenda suprapartidária, que consegue reunir simpatizantes de partidos diversos como o PT, PSDB, PSB, PSol, ou liberais na política e liberais do comportamento.
Mas essa articulação e a mobilização popular bem que poderiam se manter após a saída do meninão. Usar toda esse pessoal em rede e com boa vontade para monitorar de perto outras ameaças em curso no Congresso Nacional.
Até porque pessoas como Marco Feliciano ou Jair Bolsonaro assumem um papel que lhes permite manter uma reserva de votos em todas as eleições o suficiente para se eleger e, talvez, alguns de seus correligionários. O mesmo não posso dizer de outros pessoas e programas políticos que vão, em silêncio, roubando o que não é deles com um verniz democrático.
Para quem se preocupa com a dignidade humana, a saída de Feliciano não pode ser a linha de chegada. Tem que ser apenas o começo.
Pelo menos enquanto gays, lésbicas, transsexuais, mulheres, negros, indígenas, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas, sem-terra, sem-teto, adeptos de religiões afro-brasileiras e a ralé pobre que trabalha para comer continuarem com migalhas, enquanto os homens, brancos, heterossexuais, tementes a Deus rirem com a boca cheia de pão.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.