Cemig é responsabilizada por 179 pessoas em trabalho análogo ao de escravo
Leonardo Sakamoto
22/02/2014 20h54
A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) foi responsabilizada por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) pela submissão de 179 trabalhadores a condições análogas às de escravos em Belo Horizonte (MG). A caracterização de escravidão foi resultado de investigação que levou mais de seis meses, com análise de documentos e tomada de depoimentos das vítimas. Além de submeter trabalhadores à escravidão, a Cemig (empresa de economia mista controlada pelo governo do Estado de Minas Gerais) é acusada também de terceirização ilegal e contratação de empresas sem licitação. Procurada, a empresa enviou posicionamento negando as acusações. A matéria é de Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil:
Trabalhadores flagrados em condições análogas às de escravos realizam reparos e construção de postes da Cemig Fotos: Divulgação/SRTE-MG
O relatório de fiscalização servirá de base para a ação do Ministério Público do Trabalho. Nesta quinta-feira (20), a procuradora Luciana Marques Coutinho destacou, em apreciação prévia, que não é o primeiro problema trabalhista envolvendo a Cemig. "O resultado da ação fiscal realizada em 2013, além de comprovar os fatos narrados nas ações civis públicas já ajuizadas, ou seja, a ilicitude da terceirização e a absurda precarização do trabalho dos terceirizados, revela um incremento ou piora do quadro", escreveu. A primeira fiscalização na empresa aconteceu em julho de 2013 e foi acompanhada também pela Polícia Federal.
"A submissão dos trabalhadores a situações inadmissíveis de labor, seja em razão da jornada extenuante, não registrada nos controles de jornada e paga 'por fora' ou extra-folha, seja em função da inexistência de garantias mínimas e básicas de trabalho, como o fornecimento de água potável e instalações sanitárias nas frentes de trabalho, ou ainda em razão do exercício de atividade altamente perigosa sem treinamento/capacitação adequados, para mencionar apenas algumas das irregularidades afirmadas no relato fiscal, se encaixa no conceito de trabalho análogo à escravidão".
Trabalho escravo urbano – Os 179 empregados trabalhavam no reparo e construção da rede elétrica da Cemig e estavam submetidos a jornadas exaustivas sistemáticas. Segundo o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, que coordenou a operação, era comum os trabalhadores passarem mais de 11 horas por dia em serviço. Além disso, o descanso entre jornadas era abaixo do permitido na legislação trabalhista e os empregados não tinham nenhum dia de descanso semanal. Quando a carga de trabalho excedia os limites legais, era comum o pagamento de valores "por fora".
Além de submetidos a jornadas exaustivas, os trabalhadores não tinham água potável, banheiros ou lugar para comer. "Se nós fazemos essas exigências no meio rural, temos também que exigir o cumprimento dessas obrigações no meio urbano", ressaltou o auditor.
Dentre os 179 trabalhadores, 82 eram migrantes e estavam alojados em condições degradantes. As sete casas onde os que não eram de Belo Horizonte viviam estavam sujas, não dispunham de armários e tinham entulho e lixo acumulados em áreas comuns.
A denúncia da situação a que os trabalhadores estavam submetidos chegou ao MTE através do sindicato da categoria. De acordo com Jefferson Leandro Silva, diretor do Sindieletro, um dos empregados suicidou-se em seu alojamento em fevereiro de 2013. "Quando fomos conversar com os trabalhadores, eles relataram as dificuldades de trabalho e a dificuldade de viajar para casa por conta da jornada", contou. Segundo ele, os colegas explicaram que esse foi o motivo do suicídio.
Terceirização ilegal – De acordo com o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, a Cemig dificultou o resgate dos trabalhadores e se negou a pagar as verbas rescisórias devidas. "Tentamos até o limite", afirmou o auditor, que, para tentar garantir o direitos dos empregados, encaminhou farta documentação ao MPT.
Na nota em que nega ter submetido trabalhadores à escravidão, a Cemig afirmou que "prestou todas as informações solicitadas e tomou as medidas cabíveis diante das irregularidades apontadas", listou um histórico de providências tomadas para tentar solucionar o caso e responsabilizou a CET Engenharia Ltda., empresa terceirizada, pela situação a que o grupo acabou submetido.
Os trabalhadores tinham relação de emprego formalizada com a CET. Em 2009, a empresa já tinha firmado um termo com o MPT se comprometendo a corrigir diversos dos problemas apontados desta vez e a cumprir com a legislação trabalhista, sob pena de multa. De acordo com o Sindieletro, a CET Engenharia anunciou que será fechada depois de ter sido autuada por trabalho escravo, em dezembro de 2013. No entanto, o advogado da empresa, Eduardo Sousa, disse à Repórter Brasil que "houve redução na prestação de serviço com a Cemig, mas nada ligado com o caso". Ele disse não saber sobre um possível fechamento da empresa. A informação vai de encontro com uma declaração da Cemig, que disse ter suspendido a CET Engenharia do Cadastro de Fornecedores da empresa.
Tanto os fiscais quanto a procuradora responsável pelo caso consideraram a terceirização destes trabalhadores ilegal com base na súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho e, por isso, responsabilizaram a Cemig pelas infrações. Eles avaliaram que, subordinadas a ordens da administração da companhia, os empregados desempenhavam a mesma atividade-fim da companhia ao trabalharem na reparação e construção da rede elétrica da companhia. A Cemig não se posicionou sobre esta acusação. A empresa responde a pelo menos dois processos na justiça por terceirização ilegal, ambos iniciados pelo MPT e um deles em tramitação há mais de dez anos. De acordo com a procuradora Luciana Coutinho, a terceirização que a Cemig efetua "vem com uma precarização absurda das condições de trabalho". Ela relacionada a terceirização ao aumento de riscos para os trabalhadores. "A estrutura que essas empresas contratadas têm não se compara com a que a Cemig tem e muitos acidentes de trabalho foram motivados pela terceirização", explica.
Desta vez, além de ser responsabilizada por trabalho escravo, a Cemig também foi autuada por não oferecer treinamento aos funcionários, que lidavam diariamente com instalações elétricas. Os empregados diretos da companhia recebem seis meses de formação para realizar esse tipo de serviço, de acordo com o diretor do Sindieletro. Ele avalia que esse é um dos principais motivos, ao lado da jornada exaustiva, que explicam o alto número de acidentes de trabalho entre os funcionários terceirizados pela Cemig.
Público e privado – A equipe do MTE também analisou os contratos com as empresas que a Cemig contrata e concluiu que as terceirizadas prestam serviços diferentes daqueles para os quais foram licitadas. "Como a Cemig não consegue atender a demanda de novas ligações, ela sugere ao consumidor a contratação de uma destas empresas e as obras são revertidas ao patrimônio da companhia", exemplificou Marcelo Campos, que emendou: "Entendemos que isso é irregular e tem relação periférica com a terceirização ilegal". Ele encaminhou a denúncia ao Ministério Público Federal.
Uma das maiores empresas do Brasil, a Cemig fornece energia em 96% da área de Minas Gerais e está presente em outras 23 unidades da federação, de acordo com informações do seu site. Controlada pelo governo do Estado de Minas Gerais, a companhia de capital aberto teve receita bruta superior a R$ 26 bilhões em 2012, segundo dados da publicação "Grandes Grupos" de 2013 do jornal Valor Econômico.
* Após a publicação deste post, a Cemig enviou nota confirmando a ocorrência do suicídio, mas negando que tenha relação com as condições de trabalho na empresa. Clique aqui para ler.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.