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JBS aceita reduzir ritmo em frigorífico. "Emoções...", diria Roberto Carlos

Leonardo Sakamoto

24/02/2014 13h59

O Ministério do Trabalho e Emprego suspendeu, nesta segunda (24), a interdição que havia imposto à unidade do JBS, em Montenegro (RS), no último dia 19, motivada por uma "situação de grave e iminente risco à saúde e segurança dos trabalhadores" – detectada após fiscalização em conjunto com o Ministério Público do Trabalho.

A interdição havia ocorrido na mesma semana em que a JBS apresentou seu novo garoto-propaganda, o cantor Roberto Carlos. O que está acontecendo na unidade é um exemplo de que um dos setores que mais crescem no país pode se adaptar às necessidades do trabalhador, garantindo qualidade de vida.

Os empregados da fábrica não tiveram desconto em seus vencimentos no período. Alguns equipamentos e setores ainda estão passando por ajustes e devem ser liberados em breve, de acordo com o Olavio Lepper, gerente de recursos humanos da unidade. A JBS de Montenegro processa frangos, parte deles exportados para o Oriente Médio.

Máquinas com risco de causar amputação e esmagamentos de membros, provocar choques elétricos fatais e adoecimento. Atividades de movimentação de cargas sob riscos de queda sobre o trabalhador, entre outros problemas foram apontamos pelo MTE e o MPT. De acordo com o auditor fiscal do trabalho Mauro Muller, coordenador estadual do programa de fiscalização em frigoríficos, a empresa atendeu às determinações, realizando melhorias em seu maquinários e removeram processos que levavam ao adoecimento dos empregados.

Um dos fatores mais críticos era o "ritmo de trabalho imposto pelas máquinas". Por isso, uma das mudanças mais significativas foi a redução no ritmo de embalagem de frangos inteiros. Segundo relatório técnico elaborado para justificar a interdição, os trabalhadores do setor de frangos embalavam de 30 a 32 aves por minuto, o que exigia mais de 85 ações técnicas (movimentos) nesse período de tempo. Pelas normas brasileiras, o ideal seria no máximo 40 ações por minuto.

A empresa aceitou reduzir até esse limite e, para isso, irá instalar mais máquinas e empregar mais pessoas. "Estamos redistribuindo com mais funis de envasamento. E contrataremos mais equipes", explica Olavio.

A suspensão da interdição está condicionada ao cumprimento dessas mudanças. A cada dez dias, a unidade deverá encaminhar um relatório informando a produção e o pessoal empregado nessas atividades a fim de que os auditores fiscais possam checar se o combinado vem sendo cumprido.

O trecho, a seguir, foi retirado do relatório técnico e feito com base em questionamento aos trabalhadores. Traz as consequências do ritmo acelerado no frigorífico:

– Cerca de 73% dos empregados responderam ser necessário a redução do ritmo de trabalho para assegurar a adequação das condições de trabalho.

– Em relação as queixas de dor, 93,33% dos empregados relataram terem sentido dor na última semana. As regiões corporais com maior comprometimento foram o ombro, seguido de costas e braços.

– Em relação ao uso de medicamentos para dor, 73% dos empregados relataram o uso na última semana, com uso predominante de analgésicos, anti-inflamatórios e relaxantes musculares.

– Em relação a permanência do estado doloroso, 46,66% dos entrevistados relataram que as dores não são sentidas após um final de semana completo de repouso, sendo que 40% relataram que as dores não são sentidas após o término da jornada com um descanso noturno.

– A dor e o uso de medicamentos foi relatada por empregados bastante jovens, muitos com idade variando entre 22 a 26 anos de idade. Aproximadamente, 60% dos entrevistados relatou quadro de dormência em membros superiores fato que comprova a grave inadequação das condições de trabalho.

De acordo com o procurador do trabalho e coordenador nacional do projeto de adequação das condições de trabalho nos frigoríficos, Sandro Sardá, essa mudança por parte da empresa pode ser considerada um avanço importante, uma vez que o ritmo acelerado e os movimentos repetitivos nas indústrias processadoras de carne tem levado à aposentadoria precoce de milhares de trabalhadores em todo o país. "A empresa poderá voltar a trabalhar, desde que o ritmo seja adequado e não cause o adoecimento dos trabalhadores."

No relatório técnico elaborado para justificar a interdição, aliás, há uma parte que diz bastante sobre o nosso tempo. E sobre quem manda em quem:

"A empresa sabedora dessas condições já desenvolveu uma máquina para automatizar a atividade de ensacamento. Tal máquina realizará o ensacamento de 20 frangos por minuto."

Ou seja, o ritmo intenso estava exigindo forças do trabalhador para além de sua capacidade. Na prática, ele ensacava dez frangos a mais do que uma máquina deve fazer nas mesmas condições. Como resultado, dor e adoecimento.

A automação deve ocorrer em novembro.

O demônio – Já contei esta história a seguir antes, mas ela é pertinente:

Há mais de 50 anos, o "demônio" apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente dividido com as trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário. Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço.

Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos chefes, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas.

Essa história foi contada e analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das consequências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização extrema do trabalho.

Durante os últimos anos, a empresa Foxconn, que fabrica o meu, o seu, o nosso iPhone na China, enfrentou casos de suicídios de empregados. Em um deles, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos polos tecnológicos do país. A Foxconn também produz consoles de videogames e computadores para outras grandes empresas.

Antes de ser encurralada, deixar a fase de negação e implantar um programa para reduzir a jornada e melhorar a qualidade de trabalho, a Foxconn chamou monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe. Além de fornecer um serviço de atendimento telefônico para receber os trabalhadores depressivos ou potencialmente suicidas.

A China, como o Brasil, vive a luta entre o antigo e o moderno dentro do mundo do trabalho. E, na esteira do crescimento rápido, não raro a qualidade de vida e a dignidade do trabalhador têm sido relativizados. Pois não se deve confundir o moderno com aquilo que garante melhor qualidade de vida. Em muitas ocupações, ocorre o oposto.

Qual a diferença entre uma fábrica de ladrilhos de décadas atrás, de produtores de celulares e empacotadores de carne que seguem um ritmo maior que o das máquinas?

O cantor – Coincidentemente, esses números de frangos embalados por máquina (20) e por gente (30) por minuto repetiram-se em outra ação envolvendo a empresa, esta ganhadora de holofotes da mídia. O cantor Roberto Carlos, que passou 30 anos sem comer carne, tornou-se garoto propaganda da Friboi, pertencendo à JBS, a maior processadora de proteína animal do mundo. De acordo com o que foi divulgado pela empresa, o objetivo é que as campanhas de marketing – na qual as peças do cantor estão inseridas – ajudem a aumentar em 20% a receita líquida global neste ano.

Cresci ouvindo LPs do Roberto Carlos que minha mãe colocava na vitrola, dividindo espaço com os do Julio Iglesias – o que deve ter marcado indelevelmente minha personalidade… Portanto, tenho em minhas memórias um tempo em que ele jogava flores ao público – ao invés de bifes, coxas e sobrecoxas. Longe de mim questioná-lo por isso. Cada um sabe o tamanho do carnê do crediário que tem em casa para pagar.

Não seria simpático se, além da redução no ritmo de trabalho sem redução de salário, os trabalhadores que reclamam de dores e adoecimentos em frigoríficos tivessem direito a um show, daqueles que Roberto Carlos faz em cruzeiros por aí? Ou pelo menos um DVD grátis, daquele do especial de Natal, para assistir enquanto estiverem afastados por lesões causadas pelo trabalho? Tantas emoções…

Veja o documentário Carne, Osso, sobre a situação dos trabalhadores em frigoríficos brasileiros, clicando aqui.

Veja o comercial do Friboi, marca da JBS:

 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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