Aqui, coisas valem mais que vidas. Tanto para "bandidos" ou "mocinhos"
Leonardo Sakamoto
28/02/2014 05h16
Assassinar alguém pelo furto de coxinhas? Mandar alguém para a cadeia por subtrair chicletes e bolachas? O caso de uma pessoa em situação de rua, em Sorocaba, no interior de São Paulo, que furtou um xampu e foi espancado até sofrer afundamento de crânio, nesta semana, é mais um capítulo sobre os limites da irracionalidade de pessoas e instituições.
"Ah, mas bandidos também fazem isso com as pessoas." O argumento é de uma ignorância infantil, pois a partir do momento em que passarmos todos a agir como eles, e deixar de tentar corrigir e fortalecer as instituições, a sociedade como a conhecemos deixa de existir. Daí, é o salve-se quem puder.
Ninguém está defendendo quem comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acharmos que Justiça com as próprias mãos é solução e punições severas para crimes ridículos (mesmo reincidentes) têm função pedagógica.
Mas isso não é novidade. Este blog já falou do assunto um rosário de vezes desde o caso do garoto preso a um poste no Rio.
O problema é que, no fundo, coisas valem mais que a vida. Do lado dos "bandidos". Do lado dos "mocinhos".
Com o caso de Sorocaba, atualizei minha relação de punições idiotas. Alguns casos, nem crimes haviam sido cometidos:
Um homem em situação de rua foi espancado pelo dono de um supermercado, seus empregados e moradores, em Sorocaba (SP), após furtar um xampu nesta quarta (26). Ele está internado com afundamento do crânio.
Ademir – Assassinado por ter furtado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo de um supermercado. O pedreiro foi levado a um banheiro, agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando. Morreu por hemorragia interna e traumatismos.
Valdete – Condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Teve um habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal, pois o princípio da insignificância não se aplicaria, afinal não era para saciar a fome.
Franciely – Acusada de roubo de duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado.
Rafael – Condenado a cinco anos de prisão por carregar frascos de desinfetante ede água sanitária durante as manifestações de junho. O Ministério Público e a Justiça consideraram que o catador de material reciclável iria fazer um "artefato explosivo"
Maria Aparecida - Mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado. Perdeu um olho enquanto estava presa.
Walter – Espancado em uma cela para que confessasse o furto de uma máquina de lavar do desembargador Teodomiro Fernandez, crime que ele não cometeu. Cuspindo sangue, pediu pediu que o magistrado fizesse o investigador de polícia interromper a sessão de tortura. "Ele vai parar, quem vai bater agora sou eu", foi a resposta.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.