Qual a diferença entre ser encoxada no trem e na balada?
Leonardo Sakamoto
21/03/2014 09h21
Assim que terminei de fazer uma comparação entre mulheres que são vítimas de violência sexual, encoxadas no transporte público, e as mulheres que são vítimas de violência sexual, encoxadas em baladas de São Paulo, no contexto de um outro assunto, eis que um grupo de jovens ficou revoltado.
Vestindo a carapuça, não admitiam que um ato vil como uma tentativa de estupro em um trem lotado fosse comparado com o que eles chamaram de "formas de conquista" da noite paulistana.
Por um momento fiquei em silêncio. O que os comediantes do Monty Python diriam nessas horas em que a vida é mais nonsense do que a ficção?
Evitei tocar neste tema no blog porque achei que – tão óbvio – nem era digno de nota. Mas a humanidade, essa brincalhona, vive me surpreendendo, feito uma criança que sai de dentro de um armário e, do nada, grita: rá!
Arrancar prazer de alguém que não faz a mínima ideia do que está acontecendo ou que simplesmente não quer nada com você é violência sexual. Ou necrofilia. Qual o próximo passo dos senhores? Visitar necrotérios em busca de prazer?
Não há diferença alguma entre o que tem acontecido nos trens de São Paulo e certas ações de rapazes em festas. Como é o caso de uma moça que, após ser encoxada fortemente na pista lotada, percebeu que sua calça estava suja. Saiu chorando para casa.
Aliás, minto. Para não dizer que não há diferença, nos casos das baladas, alguns dos garotos serão protegidos pelos caros advogados de suas famílias. E as vítimas, com medo das consequências de uma denúncia, uma vez que agressor e agredida, não raro, convivem no mesmo círculo de faculdade ou trabalho, ficarão em silêncio. Ninguém quer ficar mal com o grupo.
E, em uma sociedade em que manter a aparência é mais importante do que Justiça, algumas delas preferiram o sofrimento silencioso, o isolamento, o suicídio.
Vi a mesma frase ser usada para justificar violências em trens e em baladas: "Se tivesse acompanhada de um homem, isso não teria acontecido". Mas que merda de vida é essa em que mulheres precisam demonstrar que pertencem a alguém para provarem que não estão "pedindo" para serem estupradas.
Sei que é chato e cansativo. Sei que temos a impressão de que denunciar não resolve. E muitas vezes não mesmo, porque há preconceito inclusive entre seguranças de balada e policiais que vêem isso como brincadeira adolescente. Mas são atos de violência e, independentemente da classe social, merecem ser punidos. Como sugerem entidades que atuam na defesa dos direitos das mulheres, chame a polícia, faça um BO para que isso fique registrado.
E não se engane. Não são só os "outros" que fazem isso, os "nossos" também fazem. Violência sexual não ocorre no trem com desconhecidos, mas pode estar aqui do lado. "Ah, mas o cara é amigo, apenas se excedeu." Não caia nessa. Por você e pelas outras mulheres.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.