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Dia das Mães: Precisamos mesmo destruir o passado para poder ir adiante?

Leonardo Sakamoto

11/05/2014 10h17

Por décadas, minha avó morou de aluguel em uma casinha, onde passava os dias entre a máquina de costura e os cuidados com o cachorro. Hoje, a casa, bem como minha avó, são apenas lembranças de um outro tempo.

Dia desses, andando por aquela rua, parei por uns momentos diante do prédio imponente que foi erguido no lugar. Seu número é o mesmo da casinha, coisa que não dá para esquecer porque minha mãe o havia usado como senha de sua conta – coisa que decorei pela eternidade por conta das vezes que tive que ir até o banco tirar um extrato para ela.

Mas só. O lugar é chique, com tudo muito bem arrumadinho, em nada lembrando a bagunça que sempre havia na frente da casa da velha italiana de cabeça quente. Em pouco tempo, seguranças me mediram da cabeça aos pés e diante de um "estou apenas olhando, minha vó morava aqui", franziram a testa, perguntando com sobrancelhas arqueadas em qual apartamento ela residia. Talvez querendo checar a incongruência da declaração. Como se a história daquele lugar tivesse começado com o nascimento do prédio.

Despeço-me com um sorriso curto mas ainda em tempo de ver um morador conversando com o segurança através de um alto-falante, sem precisar (ou desejar) abrir a janela de seu carro, na entrada da garagem.

O sapateiro que ficava em frente não existe mais. Muito menos a avícola no canto da rua, o clube onde os mais velhos se reuniam para jogar bocha e o tintureiro japonês e gente boa. A loja de armarinhos onde eu ia comprar linhas para a minha avó também sumiu, bem como o boteco que vendia ovo azul e sarapatel. Hoje, há um caro restaurante. Velhas senhoras que ficavam fofocando na rua, gritando com seus netos que corriam atrás de bolas, também se foram. E, com a quantidade de prédios altos que se ergueram, o céu e o horizonte também tiveram que se mudar para outro lugar.

Os dois moram hoje em alguns lugares da periferia, mas não por muito tempo. Dizem que também querem enxotá-los de lá.

Um conjunto de fatores levou minha avó embora O atestado de óbito falava em insuficiência cardíaca e respiratória. Os médicos culparam sucessivos derrames, agravados pelo Parkinson. Mas eu, que acompanhei a sua história de perto, acho que há um outro elemento não levado em conta. Ela começou a morrer no dia em que, de repente, teve que sair da casa que viveu boa parte da vida para dar lugar ao prédio alto e bonito.

Levada para longe do cachorro, das clientes, da avícola, do clube, do tintureiro, da loja de linhas, do boteco, das velhas amigas e seus meninos, ela foi separada de coisas que lhe faziam sentido. O ser humano é bicho adaptável, decerto. Ele se reergue, ainda mais tendo o horizonte e o céu a lhe fazerem companhia. Afinal de contas, São Paulo é força criadora. E para criar, é necessário antes destruir, correto?

Lembro-me do ensaio "O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento", de Marshall Berman. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas, no texto, o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto ("destruir para criar") é a realidade do constante movimento. Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo…

No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Eram um problema para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade cresça.

E o desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo. Por exemplo, fazendo crer que a necessidade do bem-estar de muitos suplanta a garantia da dignidade de alguns.

O crescimento da cidade tem sua dinâmica, claro. Mas não deveríamos esquecer que ela não é feita de pedra e cimento, mas do conjunto de histórias de sua gente. É natural que biografias deem lugar a outras. O problema é como isso é feito. Apagando o passado como se ele não tivesse existido ou construindo a partir dele.

Não acredito em imortalidade, mas sei que, pelo menos, minha avó seguirá costurando e brincando com o cachorro enquanto eu e meu irmão, seus únicos netos, ainda estivermos por aqui. Por mais que vá ficando nublada com o tempo, a memória dos que se foram não se apaga como casa demolida. Memória que alimenta a esperança de que, em algum momento, faremos da cidade um lugar melhor para se viver.

Feliz Dias das Mães.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto