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C&A não foi condenada por trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

21/05/2014 12h12

Ao contrário do que foi divulgado amplamente pela imprensa, a C&A não foi condenada por trabalho análogo ao de escravo pelo Tribunal Superior do Trabalho. Muito menos no Tribunal Regional do Trabalho da 18a Região. E o Ministério Público do Trabalho, neste caso, não ajuizou ação civil pública por trabalho análogo ao de escravo contra a empresa. E o Ministério do Trabalho e Emprego não resgatou trabalhadores de condições análogas às de escravos de suas lojas.

Quando o caso apareceu na mídia, estranhei que a situação encontrada tenha sido de trabalho análogo ao de escravo. Ele simplesmente não se encaixa nos elementos que configuram o crime de acordo com o artigo 149 do Código Penal – elementos que produziram uma extensa jurisprudência reconhecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

Achei por bem segurar a divulgação e verificar o caso desde o início. Constatamos, por fim, que nunca houve realmente condenação ou mesmo resgate de trabalhadores. Segundo a Justiça, o caso envolveu jornada excessiva, não-pagamento de horas extras, descumprimento do descanso semanal remunerado e do intervalo para refeições. Graves violações, mas não trabalho escravo contemporâneo.

Em outubro de 2012, o juiz do Trabalho Eduardo do Nascimento, em primeira instância, sentenciou a C&A a cumprir as seguintes obrigações legais em suas lojas, sob pena de multa diária de R$ 5 mil por infração e por trabalhador prejudicado: a) homologar as rescisões contratuais perante o sindicato dos trabalhadores com mais de um ano de serviços prestados; b) abster-se de prorrogar, sem qualquer justificativa legal, a jornada normal de oito horas de trabalho; c) efetuar o pagamento das horas extras no mês subsequente; d) conceder intervalo para repouso e alimentação, de no mínimo uma hora e não superior a duas horas em trabalho superior a seis horas diárias ou de 15min quando a jornada tiver duração maior que quatro horas e for inferior a seis horas; e) conceder o repouso semanal remunerado de, no mínimo, 24 horas consecutivas, preferencialmente aos domingos, obedecida escala de revezamento, preparada com antecedência mínima de 30 dias.

Nessa sentença, o juiz negou o pedido de condenação por danos morais coletivos, entendendo que o número de processos trabalhistas contra a C&A era relativamente pequeno. A decisão não tratou de trabalho escravo.

Na segunda instância, em novembro de 2013, o colegiado do Tribunal Regional do Trabalho da 18a Região manteve quatro das cinco obrigações da sentença inicial (retiraram apenas a primeira, relativa à homologação das rescisões, considerada matéria a ser resolvida no âmbito do Executivo, não do Judiciário). Mas acolheu o recurso do MPT e, enfim, condenou a C&A a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos. A ação civil pública originalmente pedia R$ 500 mil.

O Tribunal Regional do Trabalho da 18a Região, através de sua assessoria de comunicação, confirmou a este blog que a condenação não se deu por trabalho análogo ao de escravo.

Em maio de 2014, o Tribunal Superior do Trabalho apenas negou o recurso (agravo) da C&A, mantendo a decisão do TRT.

Ana Paula Andrade Silva Cunha, chefe de gabinete do ministro relator do caso no Tribunal Superior do Trabalho, Fernando Eizo Ono, confirmou a este blog que a empresa não foi condenada por trabalho escravo.

O TST confirmou que a condenação ocorreu por danos morais coletivos por conta de repetidas infrações trabalhistas nos shoppings Goiânia e Flamboyant, na capital goiana, e Buriti, em Aparecida de Goiânia.

A Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, órgão responsável pela fiscalização e combate à escravidão contemporânea, informou a este blog que não há registros de trabalhadores resgatados neste caso.

A Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás afirmou, por sua vez, que realizou ação fiscal ordinária, constatando fraudes no sistema de ponto e de pagamento de horas extras, mas sem caracterização de trabalho escravo.

No acórdão do TRT sobre o caso, porém, há um parágrafo que contradiz essa argumentação. Ao tratar do pedido de dano moral coletivo, demanda da ação civil pública, o juiz relator Eugênio José Cesário Rosa afirma que o MPT sustentou que "a conduta da recorrente [da C&A] reduziu os seus empregados à condição análoga à de escravo, tendo em vista que impôs jornada excessiva (…)".

Checamos com o autor da ação no Ministério Público do Trabalho, o procurador Alpiniano do Prado Lopes. Ele afirmou categoricamente que a situação encontrada não se tratava de trabalho análogo ao de escravo. Segundo ele, "a ação foi de excesso de jornada e não de jornada exaustiva".

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, que prevê o crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo, jornada exaustiva é um dos quatro elementos que configuram o crime – ao lado de trabalho forçado, servidão por dívida e condições degradantes de trabalho.

Trabalhar muito não configura, necessariamente, jornada exaustiva. Caso contrário, médicos, jornalistas e qualquer outra profissão que faça plantões estaria inserido, de antemão, nessa situação. Exaustiva é aquela jornada que de tão intensa e massacrante impede que o trabalhador se recupere fisicamente e coloca em risco sua vida e segurança. O que, segundo o procurador, não era o caso.

"A prova dos autos é que havia um excesso de jornada", afirmou. "Mas jornada não é coisa de menor importância. Tanto que, caso mudanças não fossem adotadas, poderíamos ter um caso de trabalho análogo ao de escravo no futuro."

Ou seja o termo trabalho escravo, recuperado pelo acórdão do TRT, teria sido usado pelo MPT como exemplo da gravidade a que o caso poderia chegar. O fato é que ele não era objeto do pedido por danos morais coletivos e nem foi o motivo da punição estabelecida pela Justiça do Trabalho. Sua menção no processo, porém, parece ter sido a causa da interpretação dúbia, servindo de subsídio para a divulgação do caso por várias instituições.

Contudo, é dever do jornalista checar a informação e sanar dúvidas que surjam da leitura de comunicados à imprensa. Afinal de contas, apesar da pressão por produtividade a que muitos de nós estamos submetidos, com a necessidade de entregar mais de uma história por dia, release não é matéria pronta para ser publicada e sim sugestão de pauta. E atores públicos nem sempre se expressam de forma clara ou correta.

A C&A deve se justificar perante à sociedade sobre os graves problemas encontrados e aprimorar seus sistemas de controle. Portanto, isto não é uma defesa da empresa, mas sim do conceito desse crime contra os direitos humanos. A fim de que casos de trabalho escravo contemporâneo sejam punidos, a imprensa – uma das responsáveis pela construção simbólica do nosso cotidiano – deve garantir que enganos não sejam divulgados. Porque se tudo for trabalho escravo, nada na verdade é.

Colaborou Thaís Brianezi

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto