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Zara admite à CPI que houve trabalho escravo na produção de suas roupas

Leonardo Sakamoto

22/05/2014 13h19

Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Trabalho Escravo da Assembleia Legislativa de São Paulo, a Zara admitiu nessa quarta (21), a ocorrência de escravidão contemporânea na fabricação de seus produtos em 2011. Foi a primeira vez que isso acontece desde que uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 15 trabalhadores imigrantes costurando peças da marca em três oficinas terceirizadas, em maio e junho daquele ano, em Americana (SP) e São Paulo (SP). A matéria é de Igor Ojeda, da Repórter Brasil.

A admissão ocorreu durante depoimento de João Braga, diretor-geral da empresa no Brasil, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Perguntado pelo presidente da comissão, o deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB), sobre a existência de condições análogas à escravidão em sua cadeia produtiva por ocasião do flagrante, o executivo respondeu afirmativamente e admitiu, na sequência, que a Zara não monitorava a AHA, fornecedora que havia terceirizado a produção para as oficinas onde foram encontrados os trabalhadores resgatados.

A Zara foi convocada a prestar depoimento à CPI por, segundo Bezerra, não ter assumido a responsabilidade sobre o caso e por ter deixado de promover alterações em seu sistema de produção de modo que a situação não se repita. Segundo o deputado, a exploração de trabalhadores faz parte do modelo produtivo da marca, não sendo algo pontual. Ele cita como exemplo a denúncia de trabalho escravo envolvendo peças da empresa em abril de 2013 na Argentina, ocorrida após o flagrante no Brasil.

Carlos Bezerra (centro) e João Braga (à direita) debatem em audiência da CPI do Trabalho Escravo. Foto: Igor Ojeda/Repórter Brasil

Durante a audiência dessa quarta-feira, a CPI do Trabalho Escravo apontou que a Zara descumpriu o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado com o MTE e o Ministério Público do Trabalho (MPT) em dezembro de 2011, documento que contém providências que a empresa deve tomar para que não aconteçam mais casos de trabalho escravo na sua cadeia de produção. Segundo o deputado Carlos Bezerra, informações obtidas pela CPI dão conta da ocorrência de irregularidades trabalhistas na cadeia produtiva da marca após a assinatura do acordo.

De acordo com o TAC, além de se comprometer a realizar vistorias em todos os seus fornecedores e subcontratados no mínimo uma vez a cada seis meses e a manter constantemente atualizada a relação dessas empresas para uso do MPT e do MTE na verificação do cumprimento do acordo, a Zara é obrigada a, caso problemas sejam encontrados, "tomar providências para saná-los por meio de um plano de ação e em notificar as autoridades sobre o fato", o que não teria ocorrido. O TAC prevê multas em caso de descumprimento dessas obrigações.

Um dos casos citados por Bezerra é o da ND Confecções Limitada ME, oficina de Itapevi (SP) apontada pela marca como sua subcontratada a partir de fevereiro de 2012. Em maio do mesmo ano, a confecção demitiu todos seus trabalhadores e parou de funcionar. Em ação judicial contra a empresa, sete ex-funcionários acusam-na de não pagar os salários referentes ao mês de maio, não recolher corretamente o FGTS, não pagar as verbas rescisórias e não homologar a demissão de parte dos trabalhadores nos órgãos competentes, impedindo que tivessem acesso ao seguro desemprego.

"A Zara não comunicou a nenhuma autoridade nenhuma irregularidade constatada na cadeia produtiva. Chama a atenção o fato que, não bastasse que não tenha havido a comunicação da irregularidades, essa confecção tenha permanecido na lista das subcontratadas até julho de 2013. Mais de um ano depois de deixar de funcionar, permanecia como empresa parte da cadeia produtiva da marca. Fica a pergunta: o TAC determina que todos os fornecedores e subcontratadas sejam vistoriados uma vez a cada seis meses. Se a Zara cumpre a determinação, como se justifica que isso tenha acontecido?", questionou o presidente da CPI durante a audiência.

Após passar alguns minutos dizendo que desconhecia o caso e ser auxiliado por assessores que o acompanhavam, o representante da marca afirmou que a empresa havia proposto um acordo amistoso entre as partes. Em seguida, afirmou que desde 2011 a Zara vem reforçando o controle sobre sua cadeia produtiva, com a realização frequente de auditorias em oficinas fornecedoras, e fazendo investimentos em iniciativas de capacitação de trabalhadores e fornecedores.

Para Bezerra, no entanto, é "clara a dificuldade da Zara no monitoramento dessa cadeia". Para ele, se em casos evidentes com o da ND Confecções existem falhas de monitoramento, em situações como a redução de trabalhadores a condições análogas à escravidão, "algo escondido, que acontece lá embaixo, com terceirizados, quarteirizados", a tendência é ser pior. "Ontem vocês apresentaram uma iniciativa que daria transparência à cadeia produtiva. Mas, pela fala do senhor, isso é praticamente impossível."

O presidente da CPI fez referência ao anúncio do desenvolvimento de um aplicativo que, segundo a empresa afirmou em coletiva de imprensa realizada na terça-feira, 20, trará informações a respeito da produção de todas as peças fabricadas em território brasileiro. Segundo explicou João Braga, a proposta consiste numa etiqueta com código QR por meio da qual o comprador, com o auxílio de um celular, pode obter informações sobre o fornecedor da peça, com nome e endereço, além da quantidade de trabalhadores contratados e o resultado e data da auditoria realizada no local. De acordo com Braga, o projeto será lançado no Brasil para posteriormente ser aplicado em outros países. "O que mudou na fiscalização da Zara? Qual a veracidade dessas informações que vocês vão fornecer por meio desse aplicativo se quem audita a Zara é a própria Zara?", questionou Bezerra.

"Lista suja" – Apesar de ter assinado o TAC com o Ministério do Trabalho e Emprego e com o Ministério Público do Trabalho, a Zara nunca assumiu a responsabilidade sobre o caso de trabalho escravo em sua cadeia produtiva. A marca tem buscado a não responsabilização na Justiça. Uma das medidas é o questionamento da constitucionalidade do cadastro oficial de empregadores flagrados com trabalho escravo mantido pelo MTE, a chamada "lista suja". Tal iniciativa resultou na suspensão da Zara no Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.

Os representantes da Zara insistem que não tinham conhecimento sobre a subcontratação de oficinas promovidas por suas fornecedoras. A alegação é que quem teria obtido lucro com a exploração foi a intermediária, e não a marca. Em abril, ao julgar a ação referente ao resgate de costureiros subcontratados pela intermediária AHA, o juiz Alvaro Emanuel de Oliveira Simões, da 3ª Vara do Trabalho de São Paulo, negou o recurso da Zara e cassou a liminar que impedia a inserção na "lista suja". Na sentença, o juiz afirmou que houve na terceirização "fraude escancarada" e que a subordinação dos costureiros à Inditex, grupo que controla a Zara, era clara.

A Zara recorreu e conseguiu reverter a decisão. Em 30 de abril, a desembargadora Rilma Aparecida Hemetério, vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, voltou a determinar que a inclusão da empresa no cadastro de empregadores flagrados seja suspensa até que o processo seja julgado em definitivo. A juíza destacou, em sua decisão, que a Zara "se comprometeu a cumprir diversas obrigações e arcar com investimentos em prol da solução dos problemas abordados pela fiscalização" e que apresentou "documentos que demonstram sua atuação positiva no que tange às obrigações assumidas".

Na audiência dessa quarta-feira, o deputado Carlos Bezerra Jr. lamentou a tentativa da Zara de questionar a lista suja. "A Zara tem duas faces. Apresenta-se à sociedade com uma face marqueteira, que promove uma série de ações de monitoramento e controle, que a gente percebe claramente que são instrumentos de marketing. Coloca-se como parceira do poder público. Isso sob os holofotes. No subterrâneo, monta uma máquina de estrutura de assessoria jurídica para tentar destruir o principal instrumento do país de combate ao trabalho escravo, que é a lista suja. Um instrumento que custou sangue, suor e lágrimas de muita gente. Nada mudou, a única coisa que mudou foi o marketing", protestou.

Em resposta, João Braga afirmou que a Zara repudia "veementemente" qualquer violação de direitos humanos. "Temos agido de uma forma correta, transparente. Realizamos uma série de ações previstas no TAC e outras extra TAC. É um compromisso a longo prazo, de supressão de uma questão muito importante, que é a precarização do trabalho. Em relação à lista suja, reafirmo que não somos contra nenhum mecanismo de defesa, nem de combate, nem de luta às condições degradantes. Estamos apenas exercendo nosso direito de defesa."

Durante a audiência dessa quarta-feira da CPI do Trabalho Escravo da Alesp, foi aprovada a convocação da M. Officer, que no dia 6 de maio mais uma vez teve trabalhadores resgatados na sua cadeia de produção.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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