Praça da Paz Celestial, 25 anos: E se Cuba fosse uma ditadura de mercado?
Leonardo Sakamoto
04/06/2014 16h43
Há 25 anos, no dia 04 de junho de 1989, o exército chinês dispersou um protesto pela democracia e por direitos que ocupava, por quase dois meses, a Praça da Paz Celestial, em Pequim, usando balas e bombas. Nunca se soube quantos foram os mortos, se centenas ou milhares. No aniversário de quarto de século dessa infâmia, a China faz de conta que nada aconteceu, proíbe manifestações que relembrem o fato e continua bloqueando tudo o que não lhe convém na internet.
O assunto voltou as páginas por conta da efeméride. Mas é mais triste saber que se Cuba fosse uma grande potência econômica, os casos de desrespeito às liberdades individuais que acontecem na ilha ficariam em segundo plano no noticiário cotidiano em detrimento às notícias sobre o pujante crescimento econômico e a necessidade de mais parcerias estratégicas conosco. Prova disso é ver como tratamos, com carinho, a ditadura de mercado chinesa.
Dois pesos, duas medidas não são monopólio da esquerda, nem da direita.
Bem, a discussão sobre a universalidade dos direitos humanos é complexa.
Quando falamos de dignidade, o Ocidente privilegia os direitos individuais em detrimento à garantia coletiva da qualidade de vida – na prática, o direito à propriedade está acima do direito a uma alimentação e moradia decentes, além da dignidade no trabalho. Os parlamentares ruralistas brasileiros que estão tentando mudar o conceito de trabalho escravo para que muita gente não seja punido pelo que fez ao semelhante é um bom exemplo.
Em certos governos regidos pelo Islã, os direitos coletivos podem ganhar força, mas os individuais ficam em segundo plano – as mulheres que o digam. O professor Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, lembra que se faz necessário um diálogo intercultural, confrontando o que há de melhor na defesa da dignidade humana em diferentes civilizações para que possamos encontrar um denominador comum. Não impositivo, mas dialeticamente negociado.
A sociedade cubana demonstra bons indicadores sociais por conta das conquistas após a revolução – mas, ao mesmo tempo, solapa em questões de liberdade política e livre expressão.
(Com esta frase, consigo deixar possessos dois grupos de amigos com duas visões diferentes de mundo. Mas ela ajuda, grosso modo, a exemplificar o que acabo de escrever.)
Se por um lado, nós como membros de uma comunidade internacional temos o dever de usar tempo e recursos para buscar um tratamento justo aos dissidentes em Cuba, também temos que usar a mesma energia para exigir o fim da prisão de Guantánamo. Ou de guerras imbecis tocadas pelo Tio Sam que, invariavelmente, acabam em massacre de civis.
É irônico que muitos dos que criticam a não-interferência brasileira em Cuba pela garantia da liberdade de expressão ataquem a "interferência" norte-americana ou europeia no Brasil quando governos ou organizações desses países divulgam seus relatórios sobre a situação dos direitos humanos no mundo. Reclamam que eles trazem uma visão parcial dos fatos.
E trazem. Até porque muitas violações aos direitos humanos no planeta são decorrência das políticas de Estado e das ações de corporações norte-americanas e europeias. Mas nem por isso as cutucadas deixam de ser úteis.
Execuções sumárias por policiais no Rio e em São Paulo, ações de milícias pagas por fazendeiros no interior do país, desaparecimentos e torturas, tratamento desumano aos encarcerados, prisões arbitrárias, ataques contra a liberdade de expressão, discriminação por cor de pele e gênero, trabalho escravo, tráfico de pessoas para exploração sexual, jornalistas executados ou obrigados a se refugiar em outros países por simplesmente reportarem os fatos.
Enfim, a maior parte dos países decide se defende ou não liberdades individuais de acordo com seu conceitos de dignidade, por suas conveniências. E a situação piora quando estamos falando de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais – validados desde que não atrapalhem as ações comerciais e não custem muito caro.
O fato é que, em se tratando de respeito à dignidade humana, mesmo que se levado em conta o parâmetro de cada povo para o que seja "dignidade humana", se gritar "pega ladrão", não sobra um, meu irmão.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.