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Emenda que permite confisco de imóvel flagrado com escravos é promulgada

Leonardo Sakamoto

05/06/2014 14h11

Brasília – O Congresso Nacional promulgou, na tarde desta quinta (5), a emenda constitucional número 81/2014, que prevê o confisco de imóveis urbanos e rurais em que trabalho análogo ao de escravo for encontrado, destinando-os a programas habitacionais urbanos e à reforma agrária.

A cerimônia, realizada no plenário do Senado Federal, contou com a presença dos ministros Ideli Salvati (Secretaria de Direitos Humanos), Eleonora Menicucci (Políticas para as Mulheres), Luiza Bairros (Promoção da Igualdade Racial) e Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário), além do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Antonio Levenhagen, parlamentares, juízes, procuradores e integrantes de sindicatos e movimentos sociais. A cantora Alcione interpretou o Canto das Três Raças.

A cerimônia com espírito fraternal é a marca do fim de uma batalha e o início de outra.

A primeira, pela aprovação da própria PEC. Pois a festa do Congresso hoje pode ter escondido o fato de que, ao longo de anos, parte dos parlamentares lutou arduamente nos bastidores para impedir o trâmite da proposta.

A segunda, uma batalha que já está sendo travada, pela regulamentação da emenda, que dirá como e em que casos se dará o perdimento de terras, imóveis e benfeitorias (a emenda inclui o que está na propriedade, como máquinas ou gado). Parlamentares ruralistas querem reduzir os casos que podem ser configurados como trabalho análogo ao de escravo. De outro lado, setores do governo e da oposição querem aplicar o conceito como é hoje para o confisco dos imóveis.

Regulamentação – O senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação da PEC do Trabalho Escravo, resolveu adotar um conceito parcial de trabalho escravo, mais restrito do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição que não é encampada pelo governo federal, mas está alinhada com a bancada ruralista, que exclui condições degradantes e jornada exaustiva da conceituação.

Renato Bignami, coordenador do enfrentamento ao trabalho escravo urbano da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo afirma que a PEC não contribuirá com o combate ao crime em oficinas de costura e canteiros de obra, por exemplo, caso sua regulamentação seja a do projeto do senador Jucá. Procuradores e juízes do trabalho ouvidos por este blog dizem que a PEC será esvaziada caso os ruralistas consigam aplicar um conceito mais brando.

De acordo com a lei vigente, são elementos que determinam trabalho escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social – um exemplo são as mais de duas dezenas de pessoas que morreram de tanto cortar cana no interior de São Paulo nos últimos anos), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, retenção de documentos, ameaças físicas e psicológicas, espancamentos exemplares e até assassinatos) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).

A legislação brasileira é considerada pela relatoria das Nações Unidas para formas contemporâneas de escravidão como de vanguarda, pois considera não apenas a liberdade mas também a dignidade como valores precisam ser protegidos. Ou seja, quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo.

A senadora e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) Kátia Abreu reforçou, em seu discurso durante a sessão que aprovou a PEC, no dia 27 de maio, que o conceito de trabalho escravo se resume ao trabalho forçado e à servidão por dívida, ignorando os outros elementos ligados à dignidade do trabalhador que fazem parte da lei. Ela repetiu os argumentos em sua coluna na Folha de S.Paulo do último sábado (31).

De acordo com deputados e senadores ouvidos por este blog, a bancada ruralista aposta em uma regulamentação restrita não apenas para enfraquecer a emenda constitucional, mas também possibilitar uma rediscussão do próprio artigo 149 do Código Penal – há projetos tramitando na Câmara dos Deputados para reduzir os elementos que configuram trabalho escravo a trabalho forçado e servidão por dívida.

Vendo a mobilização social crescer em torno do tema, o que levaria, mais cedo ou mais tarde, à aprovação da proposta, ruralistas mudaram de tática e adotaram como estratégia tentar alterar o conceito de trabalho escravo. Dessa forma, a aprovação da PEC 438 se tornaria uma janela de oportunidade para descaracterizar o que é a escravidão contemporânea.

Ideli Salvatti afirmou que não haverá acordo para mudanças no conceito que será usado na regulamentação da PEC. "O governo atuará para usar o conceito presente no artigo 149 do Código Penal, que tem norteado o combate ao trabalho escravo."

O artigo que traz o conceito de trabalho escravo é de 1940, reformado em 2003 para deixar sua caracterização mais clara. Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a sua definição. Processos por trabalho escravo contra parlamentares foram abertos no Supremo Tribunal Federal também com base no 149.

Lideranças ruralistas afirmam que há uma "confusão" no conceito de trabalho escravo, discurso que foi ouvido durante a sessão de aprovação da PEC. Movimentos, organizações sociais e parlamentares envolvidos com o tema e que acompanharam a votação vêem com preocupação essa demanda.

Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, afirma que a "confusão" sobre o conceito é uma "falácia" da bancada ruralista para inutilizar não só a PEC, mudando assim a definição do crime, mas o próprio combate à escravidão. Um deputado que acompanha o tema há tempos no Congresso e foi ouvido pelo blog afirmou que "a impressão é que ruralistas querem que seja punido apenas quem for encontrado com pelourinho, chicote e grilhões, além do recibo de compra do escravo".

Sobre isso, os favoráveis à PEC e o governo afirmam que não há necessidade disso e que o conceito de trabalho escravo já é claro no artigo 149 do Código Penal, defendendo a aprovação de legislação infraconstitucional apenas para regulamentar a expropriação, garantindo que o momento que ela ocorra. Após uma fiscalização, uma decisão de primeira instância, uma decisão colegiada ou uma decisão transitada em julgado? Decisão administrativa, civil, trabalhista, criminal?

"Essa é uma sinalização bem clara de que o Estado brasileiro não compactua com esse crime em seu território. Isso em um momento em que a Organização Internacional do Trabalho se encontra em Genebra para aprofundar as medidas previstas para essa violação de direitos humanos, a aprovação da PEC é uma sinalização para o resto do mundo", afirmou a este blog Ideli Salvatti.

A atriz Letícia Sabatella, representando o Movimento Humanos Direitos, leu um manifesto do grupo (que este missivista teve o prazer de contribuir) , afirmando que a conquista, para ser considerada histórica, precisa respeitar o conceito de trabalho escravo. "Contudo, para que a aprovação da PEC 57A/99 possa ser vista como uma vitória e lembrada pelas próximas gerações de trabalhadores como uma Segunda Lei Áurea, é preciso que tentativas para esvaziá-la não triunfem. Tentativas que, sob a justificativa de 'clarificar' o conceito de trabalho escravo querem, na verdade, retirar direitos de trabalhadores."

Sobre a emenda – A PEC prevê um acréscimo ao artigo 243 da Constituição que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. A ideia está tramitando no Congresso Nacional desde 1995, quando a primeira versão do texto foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA), mas não conseguiu avançar. Então, uma proposta semelhante, criada pelo então senador Ademir Andrade (PSB-PA), foi aprovada em 2003 e remetida para a Câmara, onde o projeto de 1995 foi apensado. Ambos estavam presentes na cerimônia de promulgação.

Devido à comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego durante uma fiscalização rural de rotina em 28 de janeiro de 2004, no que ficou conhecido como a "Chacina de Unaí", no Noroeste de Minas Gerais, a proposta foi aprovada em primeiro turno na Câmara em agosto daquele ano. Depois de muita pressão da sociedade civil, parlamentares e governo, a aprovação em segundo turno veio em maio de 2012.

A proposta de emenda constitucional 57A/1999 foi aprovada no Senado, em dois turnos, na terça (27 de maio). Foram 59 votos a favor, nenhum contra e nenhuma abstenção – era necessário um total de 49 senadores – na votação em primeiro turno. E 60 votos a favor, nenhum contra e nenhuma abstenção no segundo turno.

Desde 1995, mais de 46 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo pelo governo federal em fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obra, entre outros empreendimentos.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto