Quem tira fina de bicicleta na rua não vai para o céu
Leonardo Sakamoto
17/08/2014 15h10
– Sai da rua, mané!
O berro veio de dentro de um carro grande, daqueles que ironicamente carregam um "Salve a natureza" no protetor do estepe traseiro, ao passar quase raspando pela minha bicicleta. E não foi bem "mané" que ele disse mas, neste horário, há crianças na sala.
Mais do que o susto, fiquei um tanto quanto intrigado com a razão pela qual, em uma avenida com faixas vazias, ele resolvei tentar tirar uma lasquinha logo de mim. A única explicação plausível, descontando possíveis condições psicológicas ligadas à variação brusca de humor ou o reconhecimento deste que vos escreve por algum comentarista deste blog, seria uma tentativa de impor uma punição.
Afinal de contas, eu precisava ser educado, pela palavra e pela pedra, que a cidade foi feita para carros.
Particularmente, acho essas tentativas de catequização automobilística extremamente elucidatórias. Pois sabe aquela tese de que o nível de consciência da cidadania é diretamente proporcional à renda? Então, é cascata.
Uma pessoa em uma bicicleta tem tanto direito quanto uma pessoa em um carro de trafegar pelas ruas da cidade. E isso vai ter que ser respeitado, cada vez mais, quer o povo que tem orgasmo com essência de carro novo goste ou não.
Não acho que o pessoal ande derrubando ciclistas como pato em parque de diversão de propósito. Mas finas são tiradas de forma consciente, como parte desse processo pedagógico que querem nos impor. Até porque, na cabeça desse povo, tudo isso é um grande "ou eles, ou eu".
E, sabe como é: com essa onda maluca de ciclovias pela cidade, a paz dos motorizados está ameaçada. Qual o próximo passo? Uma política comunista de priorizar o transporte coletivo, dando menos atenção ao individual? Já não basta ter que dar direitos às mucamas e combater o trabalho escravo contemporâneo, agora mais essa? Como é que ficam os direitos dos "homens de bem"?
Tempos atrás, vi uma cena de um carrinho de bebê que, aos trancos, salvou-se de ser atropelado por um possante prateado. O motorista ainda teve a pachorra de abrir o vidro para xingar uma mãe de guarda-chuvas por atravessar em faixa de pedestres num dia molhado. Eisenstein nem precisaria da escadaria para filmar "O Encouraçado Potemkin" por aqui. Dane-se que é um carrinho de bebê. Se não funciona com um motor à explosão, não pode estar na rua.
Um pequeno congestionamento havia se formado mais à frente por conta de dois carros batidos. Por isso, deu tempo de encontrar o Mr. Driver (Pateta, #adoro) no semáforo. Depois de um longo silêncio, disse a ele a única coisa que fazia sentido:
– Trânsito louco esse, não?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.