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Fechar clínicas é enxugar gelo. Só a ampliação do direito ao aborto resolve

Leonardo Sakamoto

14/10/2014 11h54

Mais de 50 pessoas foram detidas, nesta terça (14), suspeitas de envolvimento com clínicas clandestinas de aborto, pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. A quadrilha, que envolvia médicos (reais e falsos), policiais, advogados e militares, cobrava até R$ 7,5 mil por procedimento, de acordo com reportagem do UOL.

É fácil encontrar clínicas de aborto em qualquer grande cidade brasileira. Se você pertence à classe média alta paulistana, conhece ou tem alguma amiga que poderia apontar casas na Zona Oeste ou na Zona Sul. Lá a intervenção é controlada – o que não acontece em todas as clínicas.

De qualquer forma, vamos ser bem diretos: clínica de aborto ilegal é uma droga. Não deveria existir. O direito ao aborto, que já é garantido em casos de estupro ou risco de vida para a mãe precisa ser estendido para todas as outras situações até determinado mês de gestação. Dessa forma, mulheres seriam atendidas em hospitais privados e públicos com toda a segurança e sem medo. E muitas clínicas clandestinas deixariam de existir.

Pois uma mulher que está desesperada para abortar vai abortar. Quer você, o Estado e Deus gostem ou não.

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A polícia constatou que as clínicas ilegais atendiam sempre "em locais sem quaisquer condições de higiene e salubridade, expondo a risco a integridade física e a saúde das pacientes".

Isso quando não morrem durante o procedimento, como foi o caso de Jandyra dos Santos Cruz, cujo corpo, carbonizado, foi encontrado após ela ter saído para realizar um aborto em um desses locais clandestinos no Rio.

Mas as clínicas, responsáveis ou açougueiras, não são a causa do sofrimento das mulheres. São uma consequência.

A sociedade deveria mirar sua atenção também às pessoas que garantem que elas continuem tendo demanda, ou seja, os políticos que se negam a discutir a ampliação do aborto legal. Eles ajudam a criar a procura por esse serviço clandestino que, caso contrário, seria realizado em outro ambiente.

Deputados e senadores que bradam indignados mediante a tentativa do trâmite de leis que ampliariam o direito ao aborto. Supostos representantes dos interesses de Deus na Terra ou de alguma concepção deturpada de moralidade invicta que lutam pelo direito de suas crenças pessoais continuarem a reger a vida de todos.

O Ministério Público Federal deveria corresponsabilizar os parlamentares contrários à mudança da lei por conta da morte de mulheres em clínicas clandestinas. Pois ao travar uma medida que contribuiria com a solução, eles ajudam na manutenção das condições que geram o problema. São parte dele.

Cada mulher que ficar estéril ou morrer em um procedimento "ilegal" ou cada clínica descoberta deveriam ser acrescentadas na conta desses representantes políticos.

Não há alguém, em sã consciência, que seja a favor do aborto. "Puxa, que dia lindo! Estou tão feliz que vou fazer um aborto hoje! E depois, comprar morangos e creme." Aborto é ruim, é um ato traumático para o corpo e a cabeça da mulher, tomada após uma reflexão sobre uma gravidez indesejada ou de risco. Ninguém fica feliz ao fazê-lo, mas faz quando não vê outra saída.

Promover métodos contraceptivos é importante, mas eles só excluem a necessidade do direito ao aborto na cabeça fundamentalista de certos políticos que não entendem o caso nem como questão de saúde pública, nem como ponto central na autonomia da mulher sobre o próprio corpo.

Se o direito ao seu acesso fosse ampliado, não seriam formadas filas quilométricas na porta do SUS feito um drive thru de fast food de pessoas que foram vítimas de camisinhas estouradas. Aliás, essa ideia de jerico, de ver o aborto como método contraceptivo, aparece muito mais entre as justificativas daqueles que se opõem à ampliação dos direitos reprodutivos e sexuais do que entre os que são a favor.

É óbvio que um candidato ou candidata de olho nos votos de uma sociedade bastante conservadora não vai dizer o que pensa. Por isso, tenho cada vez mais certeza que eleições não são um momento bom para se discutir políticas públicas. Pelo contrário, como já disse aqui, eleições são momento de retrocesso de uma parcela dos direitos humanos.

Vamos continuar fechando clínicas ilegais. Mas isso é enxugar gelo.

Como não acredito em acerto de contas no juízo final, muito menos em uma ação dos eleitores desse pessoal, só me resta ter fé.

Atualizada, às 17h do dia 14/10/2014, para atualização do número de detidos.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto