Você pode postar foto de cocô nas redes sociais. Desde que ele seja gourmet
Leonardo Sakamoto
07/11/2014 12h41
Apesar de gastar muita saliva à toa, desisti de 87,8% dos bate-bocas – com margem de erro de dois pontos para mais ou para menos.
Em diversas ocasiões, ainda tenho aquele reflexo de abrir a boca, ser interditado pelo bom senso e fechá-la enquanto ainda é tempo, principalmente quando me dou conta de que minha intervenção não irá gerar um fiapo de reflexão nos outros ou de mudança no meu próprio pensamento.
Enfim, continuo um mala. Mas a mala podia ser sem alça.
De uma maneira geral, não me meto em metade das coisas nas quais me metia quando tinha metade da idade que tenho hoje. Entrava em toda discussão, da cor da margarina ao sexo dos gafanhotos, como se o resultado daquele debate fosse fazer o planeta parar de rodar.
Lembro que não achava estranho quando o pessoal de um dos centros acadêmicos da universidade organizava atos contra o estado das coisas em uma sala de aula, a portas fechadas, às 22h de uma sexta-feira, com discursos longos que rompiam a madrugada, protestando para eles mesmos.
Hoje, mandaria entregar meia muzzarela, meia calabresa no evento.
A mãe psiquiatra de uma amiga, que aos 18, me diagnosticou com um "Leonardo, você fala demais", pouco tempo atrás reafirmou categoricamente, cientificamente e objetivamente e sem espaço para dúvidas "Leonardo, você está falando menos". Levou 19 anos, mas foi libertador.
Claro que gosto de uma boa discussão. Mas, às vezes, vem aquele sentimento malemolente e arrebata a gente para ficar de telespectador. Algumas pessoas chamam isso de sabedoria. Eu não. Acho que é preguiça.
Um escritor – foge-me sorrateiramente o nome – tem um carimbo com algumas opções de dedicatórias que ele usa em noites de autógrafos de seus livros. Carimba, marca a opção que tem mais a cara do seu leitor com um "X" e rubrica. Antipático e doce.
Por favor, não pensem que estou ovacionando pura e simplesmente o direito à preguiça – apesar dele ser completamente necessário, ainda mais em uma sociedade da velocidade, da mudança e do movimento que produz aberrações loucas que não conseguem parar e ficam com os dedos coçando para botar para fora uma energia, que poderia estar sendo queimada com um exercício físico, e – sem coragem – evitam colocar um ponto final em frases com medo de que não consigam recomeçá-las depois, ou seja, incapazes de fugir da grande inércia que nos guia e nos define.
Mas quero aqui defender o direito não apenas de parecer preguiçoso e antipático, mas também descabelado e sem maquiagem.
O direito de aparecer na TV com pontos na testa depois de um acidente sem ninguém achar que isso fere a estética do telespectador. De poder beber até deitar no asfalto sem ser vítima do recalque alheio.
Saí de casa hoje com o cabelo mafagafeado e barba por fazer por conta da pressa aliada à preguiça. Chegando a uma reunião, uma amiga perguntou se havia anotado a placa da jamanta que me atropelara.
Jamanta?! Quem usa essa palavra hoje em dia?
Uma vida sem maquiagem e sem photoshop está cada vez mais difícil, ainda mais em tempos de redes sociais em que o pessoal que leva sua imagem a sério demais quer se mostrar com certa pompa até quando não está fazendo absolutamente nada. Não se importa em postar o cocô na timeline, desde que decorado com flores e temperos mediterrâneos.
Por fim, algo que já havia discutido aqui e vai na mesma linha: nesse mundo, não há espaço para as rugas.
Os aparelhos de alta resolução e a transmissão digital tornaram possível perceber como muitos colegas jornalistas na TV escondem suas rugas e usam quilos de cosméticos, perdendo parte de suas expressões faciais para ficarem de acordo com o padrão estético bizarro adotado pelas emissoras.
Ou em consonância com o padrão estético também adotado pelos fabricantes de bonecos de plástico.
Parecer jovem deveria garantir mais credibilidade?
Não é ter prazer em cultivar olheiras, porque elas podem ser sinal de uma vida que precisa ser melhor pensada – vida sem tanto direito à preguiça, por exemplo. Mas incomoda ver todo esse esforço para esconder as imperfeições e incorreções que, de certa formam nos fazem reais. Muito já se escreveu sobre isso, mas os pés-de-galinha na franja dos olhos mostram que somos pessoas de verdade. E, particularmente, prefiro confiar nas pessoas de verdade para me contarem novidades.
E, afinal de contas, como disse o poeta Manoel de Barros, "pensar que a gente cessa é íngreme".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.